08 nov Jovens com câncer farão Enem 2023 no hospital em decisão inédita da Justiça: ‘Vou dar meu melhor’
O Globo | Arthur Leal | Renata Vilhena Silva | Sara Oliveira | 03/11/2023
Gabriella e Julia, de 18 anos, não podem deixar o quarto do Hospital Itaci, em São Paulo, porque estão em tratamento e foram submetidas recentemente a transplantes
Duas jovens estudantes de 18 anos diagnosticadas com câncer conseguiram, após uma decisão inédita da Justiça, autorização para poderem realizar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no leito do Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), em São Paulo, onde estão internadas há meses para tratamento da doença.
Julia Silva e Gabriella Bonfim já estavam inscritas para o vestibular quando passaram a ter que lutar contra meduloblastoma e leucemia mieloide aguda, respectivamente. O quadro delas é sensível, sobretudo porque ambas acabaram de passar por transplantes. Por isso, clinicamente não podem deixar a internação, sob risco de vida. Os parentes contam que, frustrados com a possibilidade de as adolescentes perderem o exame pelo qual se prepararam durante o ano inteiro, procuraram o Inep em busca de uma alternativa, mas não houve solução por parte do órgão federal regulador. Foi quando resolveram apelar ao judiciário.
Mesmo sonolenta, ainda cansada por conta do tratamento pesado – “peço desculpas pela minha voz, ainda estou com um pouco de dor de garganta”, disse ao telefone –, Gabriella conversou com O GLOBO e contou sobre a alegria de poder fazer a prova pela qual estudou mesmo durante estes meses em que não pôde ir presencialmente à escola. Ela, que está no 3º ano do Ensino Médio, tem o objetivo de cursar Artes Cênicas na faculdade.
– Estou muito feliz que a minha mãe e a minha professora de classe hospitalar conseguiram garantir que eu fizesse a prova aqui. Eu já estava estudando e queria muito fazer o Enem esse ano. Espero que, mesmo com a dor, o sono e o mal-estar, eu consiga dar o meu melhor, porque quero muito conseguir entrar numa faculdade boa – disse Gabriella.
A mãe dela, Bruna Pereira, também comemorou a liminar concedida pela Justiça. Segundo ela, o hospital afirma que o Ministério da Educação (MEC) já entrou em contato com a instituição confirmando que irá cumprir a decisão e alinhando sobre a adaptação do local.
– Nós ficamos muito felizes com essa decisão. Ela já está num momento tão difícil, delicado e intenso. Já tem se prejudicado tanto com esses meses sem poder ir à escola… não queríamos que ela também perdesse essa oportunidade – conta Bruna, emocionada. – Desde o início do ano ela sempre reservou momentos em casa para estudar para o Enem e mesmo depois da descoberta da reincidência da doença ela continuou com essa vontade…estudou quando pôde no hospital, mesmo em dias que não estava tão bem. Visto tudo isso, não tinha como não correr atrás, até porque é um direito dela. Agradeço a todas os envolvidos por esta decisão que foi tão rápida, saiu em menos de uma semana.
Júlia também comentou sobre o alívio ao conseguir a autorização para fazer a prova. Ela conta que, por ser cadeirante, quando fez a inscrição já tinha preocupação em saber se o local da prova seria um local com acessibilidade. Depois, veio a doença que a impede de deixar o hospital neste momento.
– Eu sempre tive essa expectativa de fazer o Enem, queria já ter feito no ano passado, mas descobri meu tumor e acabei não conseguindo fazer. Quando descobri pelo hospital que poderíamos tentar fazer a prova por aqui eu fiquei muito feliz. Quero fazer faculdade de Medicina. Sonho em ser uma investigadora criminal ou trabalhar com cirurgia pediátrica. Estou muito ansiosa – conta.
Gabriella e Julia não se conheciam antes da internação, mas suas histórias acabaram unidas pelo mesmo objetivo. A mãe de Gabriella conta que a filha iniciou o tratamento no dia 21 de agosto, logo quando o câncer voltou. Ficou internada para realizar sessões de quimioterapia, mas os médicos logo disseram que ela precisava fazer um transplante de medula óssea para diminuir as chances de a doença voltar a aparecer e, também, para ter uma alternativa melhor de cura. De lá para cá, apenas por 4 dias ela esteve fora do hospital, numa chamada “alta licença” dada pelos médicos antes da realização do transplante. Por enquanto, ela não pode sair sequer do quarto.
Regulamento exclui pessoas internadas, dizem advogadas
As advogadas da família contam que as jovens se frustraram foram informadas que, devido à complexidade de seus tratamentos, não teriam a chance de realizar a prova. De acordo com elas, o regulamento previsto no edital publicado pelo Inep exclui os estudantes que precisam ser internados para tratamentos ou cirurgias na data do exame.
As estudantes, então, viram na Justiça a última esperança para garantir o direito de realizar a prova. Por meio de uma liminar, o juiz autorizou que o Enem seja aplicado nas dependências do hospital, e determinou que o Inep providencie todas as condições necessárias para a aplicação do exame nas datas marcadas. Julia e Gabriella poderão realizar as provas nos dias 5 e 12 de novembro, no leito, em um esquema preparado para atendê-las dentro do hospital, enquanto continuam o tratamento médico.
– É importante mencionarmos a importância dessa decisão para a vida delas e de outros jovens que estão em tratamento de grave patologia em leitos de hospitais e que não podem sair do hospital, ou sequer sair do leito, para ir a uma sala separada para realizar a prova – comenta Sara Ferreira de Oliveira, sócia do escritório Vilhena Silva Advogados, especializado em direito à saúde.
A advogada vê a liminar como um marco de inclusão para jovens em situação semelhante.
– Essa realização da prova do Enem não é só para garantir que eles continuem lutando pelos sonhos deles de adentrar a faculdade, mas também é uma medida de inclusão, de você não excluir pessoas pelo fato de estarem em leitos de hospitais. Há ainda uma questão importante que é a saúde emocional desses jovens. A partir do momento em que se sentem incluídos, veem que podem seguir na luta pelos seus sonhos estudantis e profissionais, isso faz bem para eles, é positivo para o tratamento deles.
A advogada Renata Vilhena Silva, também do escritório que atuou no caso, também comenta sobre os argumentos apresentados pelo magistrado que concedeu a liminar.
– O juiz argumentou que, considerando que a internação ocorreu após a inscrição delas, não seria razoável negar esse direito, uma vez que as estudantes enfrentam um delicado quadro de saúde. Uma decisão que reconhece a determinação e a resiliência delas em meio a circunstâncias tão adversas – avalia.
Questionado sobre o caso, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) não se manifestou até a publicação desta reportagem.
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