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A polêmica sobre o Rol da ANS no Superior Tribunal de Justiça

Valor Econômico | 04.12.2020

O mercado da saúde suplementar, ao mesmo tempo que se firmou como um dos setores mais relevantes da economia brasileira, com quase 47 milhões de beneficiários, continua sendo um dos maiores focos de controvérsias. A regulação do setor é historicamente marcada por instabilidade e forte conflituosidade, que pode ser explicada desde as controvérsias que envolveram a aprovação do seu marco regulatório – a Lei 9.656/98 – que já na sua edição sofreu alterações por 44 medidas provisórias, até o crescimento exponencial da judicialização das relações contratuais. Conforme levantamento do Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (GEPS/USP), entre 2011 a 2019 houve aumento de 387% na quantidade de decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) sobre planos de saúde. Apenas em 2019 foram identificadas 13.623 decisões no tribunal paulista, das quais 51,7% dizem respeito a negativas de tratamento.

 

Marcos Patullo – Advogado e sócio do Vilhena Silva Advogados.

Com efeito, a principal negativa das operadoras para cobertura a procedimentos, materiais, tratamentos e medicamentos é a ausência de previsão no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Com efeito, a Lei 9.656/98 prevê, em seu artigo 10, parágrafo 4.º, que a amplitude das coberturas dos planos de saúde “será definida por normas editadas pela ANS”, ao passo que a Lei 9.961/2000, que criou a ANS, conferiu à agência competência para “elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades”.

Juridicamente, a controvérsia recai sobre a amplitude da atribuição conferida para a ANS regulamentar essa questão. Assim, as operadoras de planos de saúde afirmam que a ANS possui poder para editar o “Rol da ANS”, que consistiria em uma lista taxativa. Por outro lado, os consumidores argumentam que o rol traz apenas a referência básica das coberturas contratuais, possuindo caráter meramente exemplificativo.

O debate sobre o Rol da ANS ser “taxativo” ou “exemplificativo” foi amplificado pelas recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. Inicialmente, adotava-se o posicionamento construído a partir do acórdão paradigmático do então Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, segundo o qual é abusiva a conduta da operadora que impede o “consumidor do plano de saúde, de receber tratamento com o método mais moderno do momento em que instalada a doença coberta em razão de cláusula limitativa” (STJ, Terceira Turma., REsp n.668.216/SP, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJe 15/03/2007).

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No entanto, em dezembro de 2019, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.733.013/PR, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, a Quarta Turma do STJ reconheceu a taxatividade do Rol da ANS e legitimou a negativa, pelas operadoras, de procedimentos que não constem nesta lista. A divergência definitiva se formou com o julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1829583, de relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no qual a Terceira Turma do STJ enfrentou o precedente formado no REsp n.º 1.733.013 e reafirmou o entendimento de que o Rol da ANS é exemplificativo.

Importante considerar que as normas regulamentares são relevantes para a conformação do direito à saúde no Brasil, inclusive na saúde suplementar. Todavia, o espaço de atuação do regulador deve estar adstrito à competência que lhe foi atribuída pela lei de regência.

Thaís Kechichian Alonso – Advogada especializada em Direito à Saúde, sócia do escritório Vilhena Silva Advogados

Não se pode perder de vista que a Lei dos Planos de Saúde versa, de forma exaustiva, sobre as coberturas que são obrigatórias para o chamado “plano-referência”, bem como sobre as exclusões de cobertura que são autorizadas para as operadoras. A atribuição de competência para a elaboração do Rol da ANS, contida no artigo 4.º, inciso III, diz expressamente que o rol é uma “referência básica” de coberturas, ou seja, a lei que criou a ANS não conferiu à agência poder para limitar as coberturas previstas na Lei 9.656/98. Interpretar o Rol como uma lista taxativa de procedimentos é conferir à ANS um poder que a própria lei não lhe entregou.

Ademais, a Lei dos Planos de Saúde esgota as hipóteses de exclusão de tratamentos, consoante o disposto no art. 10, incisos I a X, que não faz qualquer menção ao Rol da ANS, tampouco confere autorização para que as operadoras excluam procedimentos que não estejam ali previstos, o que reforça o caráter exemplificativo do Rol da ANS.

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Tem-se, portanto, que o desfecho advindo da controvérsia acima abordada trará enorme impacto na vida dos beneficiários dos planos de saúde, que fazem jus ao acesso ao tratamento mais adequado para combate da patologia, independentemente de constar do Rol de procedimentos da ANS, de modo que qualquer entendimento diverso representará verdadeiro retrocesso aos direitos conquistados pelos consumidores, que ficarão reféns de medidas administrativas e burocráticas, culminando em violação ao espírito da Lei 9.656/98.

*Marcos Paulo Falcone Patullo – Advogado especializado em Direito à Saúde, sócio do escritório Vilhena Silva Advogados. Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Departamento de Medicina Preventiva.

Thaís Kechichian Alonso – Advogada especializada em Direito à Saúde, sócia do escritório Vilhena Silva Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES e pós-graduada em Direito Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus.



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