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As dúvidas sobre ‘open health’

Jota | Lígia Formenti | 09/03/2022

Sobram adjetivos e faltam explicações na proposta do ministro Queiroga para um ‘open banking’ na saúde

Depois das críticas que recebeu de entidades de defesa do consumidor, do descontentamento das empresas de saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, apresentou em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo no último dia 5 um esboço de mudança para a proposta de criação de um sistema de “open health”.

O princípio da ideia permanece: adaptar para a saúde suplementar o modelo de “open banking” com a promessa de reduzir o custo para usuário. A mudança, nas palavras do ministro, resultaria em “um sistema moderno, eficaz, transparente e que traga mais concorrência ao mercado”.

Sobram adjetivos, mas faltam explicações sobre como isso poderia ser colocado em prática. A ideia sugerida por Queiroga tem como ponto de partida o compartilhamento de dados entre planos, para aumentar a concorrência e facilitar a portabilidade. Haveria, nas palavras do ministro, um “cadastro positivo da saúde”. Nessa lógica, bons pagadores seriam disputados pelas empresas.

A proposta do “open health” pode ser muito bem intencionada, mas não há nada que indique que empresas de saúde suplementar estejam preocupadas com a inadimplência. Usuários de planos de saúde sabem que o plano pode ser cancelado quando mensalidades não são quitadas. Por isso, esforçam-se para estar em dia com os pagamentos. Dados da ANS mostram que os índices de inadimplência, de 2019 para cá, estão relativamente estáveis. Variam entre 6% e 11%, conforme o mês do ano. O valor recebido de beneficiários no quarto trimestre de 2021 foi de R$ 52 bilhões. No quarto trimestre de 2020, foram R$ 47 bilhões.

Também não foi explicado pelo ministro o que levaria empresas de planos de saúde a reduzirem as mensalidades. Uma das possibilidades seria operadoras, a partir dos dados, saírem em busca de pessoas com boa saúde, jovens e com uma vida regrada – que não fumem, bebam pouco, pratiquem exercícios e tenham uma dieta equilibrada. Em tese, são os clientes dos sonhos para empresas, uma vez que o risco de problemas sérios de saúde – e de gastos – torna-se menor. Mas a seleção de risco não é permitida na saúde suplementar.

Veja também: A quem interessa o open health?

A lei que regulamenta o setor impede que pessoas com doenças crônicas ou idosos, por exemplo, sejam recusados pelos planos. E é fácil entender a razão. A regra impede que pessoas que, por anos pagaram planos, fiquem desprotegidas num momento de necessidade.

Um dos princípios do setor é o mutualismo: para que idosos ou pessoas doentes não tenham mensalidades muito altas, em razão do risco mais elevado de adoecer, a estratégia é diluir o risco entre todos os beneficiários. Pessoas mais jovens e saudáveis pagam um pouco mais para garantir a assistência quando precisarem. “É uma lógica feita para, em tese, não barrar o idoso ou pessoas mais vulneráveis da saúde suplementar”, define Lígia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Há ainda um outro motivo para que esses dados de saúde não sejam usados pelas operadoras. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impede que informações de saúde sejam acessadas, justamente para evitar que o uso de dados seja usado contra a própria pessoa.

Em janeiro, quando o ministro divulgou as linhas gerais de sua proposta para o “open health”, gregos e troianos mostraram que a ideia representava uma ameaça de desrespeito à LGPD.

No artigo, Queiroga desconversa. Afirma que “os dados pertencem a cada um de nós, e sua inviolabilidade é assegurada, pois estarão preservados sob a guarda do Estado”. Diz que as operadoras poderiam ver apenas os dados financeiros. Deixa, no entanto, tudo muito vago. A consulta seria anônima. Mas não há detalhes sobre quais mecanismos seriam usados. Empresas teriam acesso ao perfil dos usuários, mas o ministro não explica quais dados estariam nesse “perfil”. Ele esclarece apenas que, a partir do sistema, seria possível ver a pontualidade do programa e quanto pagam.

Informações são sempre preciosas. Da forma descrita pelo ministro, a maior transparência beneficiaria apenas as empresas, que teriam acesso a informações da clientela de seus concorrentes. Nessa relação desigual, usuários teriam um papel secundário. Restaria a eles aguardar serem procurados por empresas interessadas em seu perfil, seja pelo fato de serem bons pagadores, seja pelo fato de ter uma renda que se encaixa no que a empresa se interessa.

O presidente da ANS, Paulo Rebello, afirma que não há como fazer uma comparação entre “open banking” e “open health”. “São mercados diferentes. No caso de juros e de tarifas, bancos podem fazer reduções. Mas no caso dos planos de saúde, não há como fazer mágica. O setor é regulado, os procedimentos têm um custo, há um rol de assistência mínima que tem de ser seguido”, disse em fevereiro, em entrevista ao JOTA. Para Rebello, a melhor forma de aumentar a portabilidade dos planos é ampliar as informações para o consumidor. A ANS possui vários dados que podem ficar mais acessíveis. A sugestão de Rebello é melhorar a apresentação destas informações para que usuários tenham mais recursos para fazer suas escolhas.

A tese de adaptar o conceito do “open banking” para a saúde foi inicialmente defendida pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. A ideia foi encampada por Queiroga em janeiro, sob a justificativa de que, ao facilitar a portabilidade na saúde suplementar, todos saem ganhando. Mas embora o ministro venha a público apresentar fragmentos desta proposta, ela está longe de ser explicada.

Há duas semanas, um grupo de trabalho foi formado para discutir o tema. A animação do ministro da Saúde, do presidente do Banco Central e do ministro da Economia, Paulo Guedes, que também sempre fala sobre o tema, não contagia outros setores.

Empresas de saúde suplementar têm dúvidas sobre o alcance das medidas, integrantes de associações de defesa do consumidor temem que a proposta ameace o sigilo dos dados e traga instrumentos para que pessoas consideradas pouco atrativas pelos planos (como idosos) sejam expulsas do mercado de saúde suplementar por meio de cobranças altíssimas de mensalidades.

“A proposta traz o risco de desequilibrar o sistema de saúde brasileiro, onerando cada vez mais o SUS em benefício das empresas”, afirma a especialista em saúde pública Silvana Souza Silva Pereira. Ela critica ainda a estratégia de premiar o bom pagador. “Não se trata de um plano de telefonia. A inadimplência certamente já está nos cálculos de risco da carteira e dissolvida entre beneficiários, na lógica do mutualismo.”

No artigo, Queiroga afirma que o sistema de “open health” proposto é uma questão de coragem e decisão. Mas um passo importante talvez o ministro tenha esquecido: seria importante, sobretudo para uma medida que afeta 48,9 milhões de beneficiários, antes de mais nada dar detalhes do que se pretende. É uma questão de informação.

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