A saúde suplementar no Brasil é um campo complexo, regido por uma série de normas e classificações que visam padronizar o atendimento e garantir os direitos dos beneficiários. Dentre os elementos cruciais que moldam esse cenário, destacam-se as Classificações Internacionais de Doenças (CID), a Cobertura Parcial Temporária (CPT) para doenças preexistentes, e o papel regulador da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Este artigo busca desvendar esses conceitos, explorando suas interconexões e o impacto direto na vida dos usuários de planos de saúde.
Com a iminente transição da CID-10 para a CID-11, e as constantes discussões sobre a abrangência da cobertura dos planos, é fundamental compreender como essas classificações influenciam a determinação do que é uma doença ou síndrome, e como a ANS se posiciona diante dessas definições para assegurar a assistência médica. Abordaremos a evolução das classificações, os mecanismos de proteção ao consumidor como a CPT, e a postura da ANS frente às novas diretrizes e à obrigatoriedade de cobertura.
A Classificação Internacional de Doenças (CID) é uma ferramenta essencial para a padronização e o registro de informações de saúde em nível global. Desenvolvida e mantida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a CID permite a codificação de diagnósticos, sintomas, causas de doenças, lesões e outros problemas de saúde, facilitando a coleta de dados estatísticos, a pesquisa epidemiológica e a gestão de sistemas de saúde.
Tatiana Kota, advogada do Vilhena Silva Advogados
A CID-10, a décima revisão da Classificação Internacional de Doenças, tem sido o padrão global por muitos anos. Lançada em 1992, ela fornece um sistema alfanumérico para classificar doenças e outros problemas de saúde, com cerca de 17.000 códigos únicos. Sua estrutura permite uma categorização detalhada, sendo fundamental para a identificação de tendências de saúde, a alocação de recursos e a avaliação da eficácia de intervenções de saúde pública. No Brasil, a CID-10 é amplamente utilizada em prontuários médicos, sistemas de faturamento de planos de saúde e registros de mortalidade e morbidade.
A CID-11, a décima primeira revisão, representa um avanço significativo em relação à sua predecessora. Lançada em 2019 e entrando em vigor globalmente em janeiro de 2022, a CID-11 foi desenvolvida para ser mais digital, flexível e fácil de usar, incorporando os avanços científicos e tecnológicos das últimas décadas. Uma das principais melhorias é a sua estrutura mais granular e a capacidade de capturar informações mais detalhadas sobre condições de saúde, incluindo novos capítulos para condições como transtornos do espectro do autismo e resistência antimicrobiana.
No contexto brasileiro, a transição para a CID-11 está em andamento, com a previsão de início de sua utilização em janeiro de 2027, conforme a Nota Técnica 91/2024. Essa implementação gradual visa permitir que os sistemas de saúde, profissionais e operadoras de planos de saúde se adaptem às novas codificações e à estrutura da classificação. A CID-11 promete maior precisão no registro de dados de saúde, o que pode impactar positivamente a qualidade do atendimento, a pesquisa e a formulação de políticas de saúde.
Ao contratar um plano de saúde, um dos pontos de maior atenção para o beneficiário é a questão das doenças ou lesões preexistentes (DLPs). A legislação brasileira, por meio da Lei nº 9.656/98, que regulamenta os planos e seguros privados de assistência à saúde, estabelece regras claras para a cobertura de condições de saúde já existentes no momento da contratação do plano. É nesse contexto que surge a Cobertura Parcial Temporária (CPT).
A Cobertura Parcial Temporária (CPT) é uma restrição imposta pela operadora de plano de saúde para a cobertura de procedimentos de alta complexidade, leitos de alta tecnologia e procedimentos cirúrgicos relacionados a doenças ou lesões preexistentes declaradas pelo beneficiário no momento da contratação do plano. Essa restrição tem um prazo máximo de 24 meses, contados a partir da data de início da vigência do contrato.
O principal objetivo da CPT é proteger as operadoras de planos de saúde contra a contratação de planos por indivíduos que já possuem uma condição de saúde conhecida e que buscam o plano apenas para cobrir tratamentos caros e imediatos. Para que a CPT seja aplicada, é fundamental que o beneficiário declare espontaneamente a doença ou lesão preexistente. A operadora, por sua vez, deve informar de forma clara e por escrito sobre a existência e as condições da CPT no contrato.
É crucial diferenciar a CPT da carência. A carência é o período de tempo, contado a partir da contratação do plano, durante o qual o beneficiário não tem direito a determinadas coberturas, independentemente de possuir ou não uma doença preexistente. A carência se aplica a todos os beneficiários e a todos os procedimentos, conforme prazos máximos estabelecidos pela ANS (por exemplo, 24 horas para urgência e emergência, 300 dias para parto a termo, e 180 dias para os demais casos).
Já a CPT se aplica exclusivamente a doenças ou lesões preexistentes. Isso significa que, durante o período da CPT, o plano de saúde cobre os demais procedimentos e tratamentos não relacionados à DLP informada. Por exemplo, se um beneficiário declara ter diabetes e é aplicada a CPT, ele terá cobertura para uma apendicite, mas não para uma cirurgia bariátrica relacionada ao diabetes durante os 24 meses da CPT.
Mesmo com a aplicação da CPT, a operadora não pode negar cobertura para atendimentos de urgência e emergência, mesmo que estejam relacionados à doença preexistente. Além disso, a ANS reforça que sintomas não devem ser considerados doença preexistente para fins de CPT. Uma dor, por exemplo, não é uma doença preexistente, e a operadora não pode utilizá-la como base para aplicar a CPT.
É importante ressaltar que, caso a operadora alegue doença preexistente sem que o beneficiário tenha declarado a condição, ou sem a realização de exames ou perícia médica que comprovem a má-fé, a negativa de cobertura pode ser considerada abusiva e passível de contestação judicial.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não possui uma definição formal e isolada que diferencie “doença” de “síndrome” em seus documentos oficiais. A agência reguladora baseia suas diretrizes e o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde na Classificação Internacional de Doenças (CID), que já estabelece as nomenclaturas e codificações para as diversas condições de saúde. Dessa forma, a ANS adota a terminologia da CID para determinar as coberturas obrigatórias dos planos de saúde.
Em suas resoluções e comunicados, a ANS faz referência tanto a doenças quanto a síndromes, seguindo a classificação da CID. Por exemplo, ao ampliar as regras de cobertura para tratamento de transtornos globais do desenvolvimento, a ANS menciona especificamente condições como o “Autismo infantil” (CID-10 F84.0) e a “Síndrome de Rett” (CID-10 F84.2), demonstrando que a agência não faz distinção entre os termos para fins de cobertura, desde que a condição esteja listada na CID e no Rol de Procedimentos.
Essa abordagem garante que a cobertura dos planos de saúde esteja alinhada com os padrões médicos internacionais, evitando ambiguidades e garantindo que os beneficiários tenham acesso aos tratamentos necessários para uma ampla gama de condições de saúde, sejam elas classificadas como doenças ou síndromes.
Para a ANS, o conceito de Doenças ou Lesões Preexistentes (DLPs) abrange tanto doenças quanto síndromes que o beneficiário já conhecia no momento da contratação do plano de saúde. A agência considera como DLP qualquer condição de saúde que o beneficiário tenha conhecimento prévio, independentemente de sua nomenclatura.
É importante destacar que a ANS é clara ao afirmar que sintomas isolados não devem ser considerados como doença preexistente. Uma dor de cabeça crônica, por exemplo, é um sintoma, e não uma doença em si. A operadora do plano de saúde não pode, portanto, aplicar a Cobertura Parcial Temporária (CPT) com base em um sintoma relatado pelo beneficiário. A CPT só pode ser aplicada a uma doença ou síndrome diagnosticada e declarada.
A transição da CID-10 para a CID-11 representa um marco importante para a saúde global, e no Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) desempenha um papel central na adaptação do sistema de saúde suplementar a essa nova realidade. A Lei nº 9.656/98, que rege os planos de saúde, já estabelece a obrigatoriedade de cobertura para todas as doenças listadas na Classificação Internacional de Doenças (CID). Com a implementação da CID-11, essa obrigatoriedade será estendida às novas codificações e condições de saúde incluídas na nova classificação.
A ANS, como órgão regulador, é responsável por definir o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que estabelece a cobertura mínima obrigatória para os planos de saúde no Brasil. Esse rol é dinâmico e atualizado periodicamente, incorporando novos tratamentos, exames e tecnologias, sempre com base nas evidências científicas e nas classificações da CID. Com a adoção da CID-11, o Rol da ANS deverá ser atualizado para refletir as novas codificações e garantir a cobertura das doenças e síndromes listadas na nova classificação.
Atualmente, a ANS já determina a cobertura para uma vasta gama de condições, incluindo transtornos globais do desenvolvimento, como o autismo, com base na CID-10. A expectativa é que essa cobertura seja mantida e ampliada com a CID-11, que traz uma abordagem mais detalhada e atualizada para essas e outras condições de saúde. A partir de 1º de julho de 2022, por exemplo, a ANS tornou obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicado pelo médico para o tratamento de transtornos globais do desenvolvimento, o que demonstra a tendência da agência em garantir o acesso a tratamentos eficazes, independentemente da nomenclatura específica.
A implementação da CID-11 no Brasil é um processo gradual, com previsão de início de sua utilização em janeiro de 2027. Esse período de transição é necessário para que os sistemas de informação em saúde, os profissionais e as operadoras de planos de saúde se adaptem às novas codificações e à estrutura da CID-11. Durante esse período, a ANS continuará a utilizar a CID-10 como referência para o Rol de Procedimentos, mas a tendência é que as novas diretrizes e atualizações já comecem a refletir a estrutura e as novidades da CID-11.
É importante que os beneficiários de planos de saúde estejam cientes de que a obrigatoriedade de cobertura para as doenças listadas na CID é um direito garantido por lei. Caso haja negativa de cobertura para um tratamento ou procedimento que esteja no Rol da ANS e seja indicado pelo médico, o beneficiário pode e deve buscar seus direitos, seja por meio de canais de atendimento da própria ANS, seja por via judicial.
A Classificação Internacional de Doenças (CID), em suas versões CID-10 e a vindoura CID-11, a Cobertura Parcial Temporária (CPT) para doenças preexistentes, e a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) são pilares fundamentais que sustentam o sistema de saúde suplementar brasileiro. A compreensão desses elementos é crucial para beneficiários, operadoras e profissionais de saúde, garantindo a transparência e a efetividade na prestação de serviços.
A transição para a CID-11 representa um avanço significativo na padronização e detalhamento das informações de saúde, prometendo maior precisão diagnóstica e, consequentemente, um impacto positivo na qualidade da assistência. A ANS, por sua vez, continuará a desempenhar seu papel regulador, adaptando o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde para garantir que as novas classificações se traduzam em cobertura adequada e acesso a tratamentos essenciais.
É imperativo que os consumidores de planos de saúde estejam informados sobre seus direitos, especialmente no que tange à CPT e à obrigatoriedade de cobertura de doenças listadas na CID. A declaração de doenças preexistentes deve ser feita com clareza, e a operadora deve agir com transparência na aplicação da CPT, sempre respeitando os prazos e as condições estabelecidas pela ANS. A atuação da agência é vital para mediar as relações entre beneficiários e operadoras, assegurando que o acesso à saúde seja um direito fundamental e não uma barreira.
Em suma, a evolução das classificações médicas e a regulamentação dos planos de saúde caminham juntas para um sistema mais justo e eficiente, onde a informação e o conhecimento são as ferramentas mais poderosas para garantir a saúde e o bem-estar de todos.
A aplicação da Cobertura Parcial Temporária (CPT) para doenças preexistentes é um tema que gera muitas dúvidas e discussões, especialmente quando se trata de condições como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outros transtornos globais do desenvolvimento. A natureza desses transtornos, muitas vezes diagnosticados na infância e com características que podem ser interpretadas de diferentes formas, levanta questões sobre a legalidade e a ética da imposição da CPT.
É importante ressaltar que, para o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a jurisprudência e o entendimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) têm se consolidado no sentido de que a CPT não deve ser aplicada. O autismo, embora seja uma condição que pode ser diagnosticada precocemente, não se enquadra na lógica da CPT, que visa coibir a má-fé na contratação de planos de saúde para tratamentos de alto custo já conhecidos e iminentes.
O TEA é uma condição de desenvolvimento que demanda acompanhamento contínuo e terapias multidisciplinares, e não uma doença que se manifesta de forma súbita e que o beneficiário poderia ter omitido para obter cobertura imediata. A própria ANS tem ampliado as regras de cobertura para o tratamento de transtornos globais do desenvolvimento, tornando obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicada pelo médico assistente, a partir de 1º de julho de 2022. Isso reforça a ideia de que o acesso ao tratamento para o TEA é um direito fundamental e não pode ser restringido por uma CPT.
Para outros transtornos do desenvolvimento, a situação pode ser similar à do TEA. A lógica por trás da não aplicação da CPT reside na natureza dessas condições: são transtornos que afetam o desenvolvimento e que, em muitos casos, não são “curáveis” no sentido tradicional, mas requerem intervenções contínuas para melhorar a qualidade de vida do indivíduo. A imposição de uma CPT para essas condições seria, em muitos casos, uma barreira indevida ao acesso a tratamentos essenciais.
No entanto, é fundamental que o diagnóstico e a indicação de tratamento sejam claros e baseados em evidências. A operadora de plano de saúde pode questionar a aplicação da CPT se houver indícios de que a condição foi omitida intencionalmente no momento da contratação, mas a simples existência de um transtorno do desenvolvimento não é, por si só, motivo para a aplicação da CPT. A ANS tem se posicionado no sentido de garantir a cobertura para essas condições, visando proteger o beneficiário e assegurar o acesso à saúde.
Mesmo com o entendimento de que a CPT não se aplica a condições como o autismo, a declaração de saúde no momento da contratação do plano continua sendo um documento de extrema importância. É nela que o beneficiário informa sobre quaisquer doenças ou lesões preexistentes. A omissão de informações relevantes pode levar à suspensão ou rescisão do contrato, caso a operadora comprove a má-fé do beneficiário.
No caso de transtornos do desenvolvimento, é aconselhável que a condição seja declarada, mesmo que a expectativa seja de não aplicação da CPT. Isso evita futuros questionamentos por parte da operadora e garante a transparência na relação contratual. Em caso de dúvidas ou negativa de cobertura, o beneficiário deve buscar orientação jurídica e acionar os canais de atendimento da ANS para garantir seus direitos.