09 abr Como funciona a ECMO, terapia usada pelo humorista Paulo Gustavo
O Estado de S.Paulo | Renata Okumura | 08.04.2021
Oxigenação por Membrana Extracorpórea é procedimento usado em casos graves de comprometimento dos pulmões e do coração, incluindo a covid; sem cobertura do SUS, terapia pode custar até R$ 100 mil
Com capacidade de funcionar como um pulmão ou coração artificial, a terapia de Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO) é um procedimento de alta complexidade usado em casos graves de comprometimento respiratório ou cardíaco, após o paciente ter sido submetido a outros tratamentos que não reverteram o quadro clínico. Embora não trate a condição que causou a insuficiência, oferece conforto ao paciente até que a equipe médica adote a melhor conduta. A técnica, que também pode ser usada em pessoas que aguardam a realização de um transplante de pulmão ou coração, atualmente está sendo utilizada em pacientes em estado muito grave de covid-19.
Na última sexta-feira, 2, após apresentar piora no estado de saúde, o humorista Paulo Gustavo foi submetido ao tratamento. A equipe médica afirmou ter optado pelo início da terapia com o objetivo de permitir uma melhor recuperação da função pulmonar. Sem cobertura pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o tratamento pode custar até R$ 100 mil.
Entenda como funciona a ECMO:
O que é ECMO?
É um procedimento usado em casos graves de comprometimento dos pulmões e do coração em que o equipamento funciona como um pulmão ou coração artificial.
A sigla ECMO significa Extracorporeal Membrane Oxygenation ou Oxigenação por Membrana Extracorpórea (tradução em português). Além dela, a sigla ECLS, que significa Extracorporeal Life Support ou Suporte de Vida Extracorpóreo (tradução em português), também é utilizada como referência à terapia que já é adotada há muitos anos.
“Essa terapêutica é utilizada desde a década de 70. No início, muito complexa e com grande aparelhos. Foi sendo aperfeiçoada. O aumento do uso nacional e internacional ocorreu há dez anos com o surto de H1N1. Começou a ser usada com maior frequência e, agora com a pandemia, começou a registrar maior utilização também”, explica Paulo Manuel Pêgo Fernandes, cirurgião cardiologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo, que no último ano utilizou a técnica em mais de 30 pacientes.
Como funciona a ECMO?
Durante a realização da técnica, o sangue do paciente circula fora do corpo, por meio de cânulas, passa pela bomba e membrana e retorna oxigenado para o corpo. A terapia de Oxigenação por Membrana Extracorpórea é um procedimento usado em casos graves de comprometimento dos pulmões e do coração. O paciente pode ficar com o equipamento por um dia ou até mesmo por semanas ou meses.
Para quais casos a técnica é recomendada?
A técnica é realizada após o paciente ter sido submetido a outros tratamentos que não reverteram seu quadro clínico. No circuito de oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa, a membrana realiza a função do pulmão. Já no circuito de oxigenação por membrana extracorpórea veno-arterial, a membrana substitui a função do coração e do pulmão.
“No caso da covid-19, na maioria das vezes, o problema é pulmonar, então, na maioria das vezes é utilizada a forma veno-venosa. Algumas vezes, a covid também compromete muito fortemente o coração. Neste caso é usado o tipo veno-arterial. Além disso, existem outras doenças cardiológicas, infarto do miocárdio, choques cardiogênicos, doentes que estão na fila para transplante de coração e de pulmão, que se tornam muito graves ao longo do tempo e necessitam de um tipo de ECMO veno-venoso ou veno-arterial”, acrescenta Fernandes.
Quais benefícios o uso da ECMO proporciona?
Embora não trate a condição que causou a insuficiência pulmonar ou cardíaca, oferece conforto ao paciente até que a equipe médica adote a melhor conduta. “O tratamento permite manter o paciente oxigenado em casos em que o pulmão já não é capaz de realizar a tarefa de oxigenação de maneira adequada, mesmo com o paciente intubado e recebendo oxigênio a 100%”, afirma Diego Gaia, cirurgião cardiologista do Hospital Santa Catarina.
Segundo ele, durante o período de uso da ECMO é possível promover um ‘descanso’ aos pulmões, que passam a receber pressões baixas e quantidades menores de oxigênio, auxiliando na recuperação. O mesmo benefício é observado com relação ao coração.
É um equipamento de alta complexidade que está sendo utilizado por pacientes com covid?
Pacientes com quadro mais grave de covid-19 necessitam de internação hospitalar. Quando é muito grave, precisam de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Desses pacientes, uma parte necessita de intubação. Após o procedimento, uma parte evolui satisfatoriamente, mas em uma parcela de casos a funcionalidade do pulmão continua piorando. Neste momento, se avalia a utilização da ECMO”, explica o cirurgião cardiologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.
“A terapia pode substituir temporariamente a função completa dos pulmões, enquanto o pacientes se recupera da infecção pela covid-19. A terapia tem sido usada com sucesso em casos graves”, acrescenta o cirurgião cardiologista do Hospital Santa Catarina.
Quais as diferenças e semelhanças entre ventilador mecânico e a terapia por ECMO?
Pacientes que fazem cirurgia, que demandam anestesia geral, são intubados e colocados no ventilador mecânico. “Esse equipamento é rotineiro, está no centro cirúrgico, assim como em UTIs. A ECMO é uma medida excepcional e menos utilizada”, afirma Fernandes.
“O ventilador mecânico fornece oxigênio e pressões de maneira a ajudar o melhor funcionamento dos pulmões, mas a troca de gases é feita pelo próprio pulmão do paciente, já na ECMO a troca é feita pela máquina e o pulmão fica inicialmente em repouso sendo ativado quando demonstra sinais de recuperação, momento em que ocorre o desmame da máquina e o retorno do pulmão para funcionar por si”, acrescenta Rafaela Gato, pediatra e cardiologista pediátrica do Sabará Hospital Infantil.
Além das máquinas, é necessário que profissionais sejam treinados e que hospitais tenham capacidade de intervenção avançada?
Para utilizá-lo, é preciso ter a máquina em si, depois a parte descartável, que é a própria membrana, as cânulas. “Em terceiro lugar, é preciso ter equipe médica que saiba colocar o aparelho. Em quarto lugar, precisa ter uma equipe de intensivistas, fisioterapeutas, enfermeiros que saibam cuidar do aparelho no dia a dia. E em quinto lugar, alguém que pague pela terapêutica. Isso é de uso mais restrito que o uso habitual do ventilador mecânico”, avalia o especialista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.
Quais resultados apresentam os pacientes que usam esse suporte?
Pacientes submetidos à ECMO são aqueles que, sem a terapia, provavelmente teriam chances mínimas de sobrevivência. “Dados internacionais demonstram sucesso de retirada do aparelho de 50 a 80%, dependendo de cada paciente, o que representa melhora significativa frente às chances originais. Vale ressaltar que alguns pacientes podem necessitar da assistência da máquina por longos períodos. Às vezes, por meses”, afirma Gaia.
Em contrapartida, quais são os riscos?
O fato de o sangue circular fora do corpo do paciente aumenta o risco de infecção e inflamação. “Durante a terapia, o paciente precisa receber continuamente medicação anticoagulante, chamada heparina, o que promove também risco de hemorragias e tromboses. Vale lembrar, por exemplo, que a terapia não trata diretamente a covid-19, mas permite que o paciente tenha tempo para se recuperar”, explica o cirurgião cardiologista do Hospital Santa Catarina.
Pode ser usada por todas as idades?
Antes mesmo da pandemia, a ECMO foi utilizada em recém-nascidos que sofrem da doença da membrana hialina, síndrome da angústia respiratória. “No caso especificamente de covid-19, eu desconheço a utilização”, ressalta o cirurgião cardiologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.
De acordo com o especialista, a Organização Extracorpórea de Suporte à Vida (ELSO), uma sociedade internacional de registros e controles do uso de ECMO no mundo inteiro, recomenda que não seja feito uso em pacientes acima de 65 anos. “Alguns serviços estendem até 70 anos, mas acima dessa idade não se utiliza porque os resultados são muito insatisfatórios”, orienta Fernandes.
Quais as contraindicações para a realização da ECMO?
Em caso de pacientes que tenham alguma doença irreversível e não tratável, a ECMO não é recomendada.
“Além disso, em crianças, por exemplo, existe limite de peso e idade gestacional (relacionada com a prematuridade), diagnóstico de doenças metabólicas e genéticas, mas de maneira geral é contraindicada quando existe falência já instalada de múltiplos órgãos, doença neurológica grave (aguda ou crônica), sangramentos não controlados ou alguma doença de base em fase de terminalidade”, explica a pediatra e cardiologista pediátrica do Sabará Hospital Infantil.
Essa tecnologia é facilmente encontrada em hospitais brasileiros?
Não. Só alguns hospitais possuem esta tecnologia. “Sua utilização demanda não apenas da disponibilidade do aparelho, mas de um time completo e treinado especificamente na técnica. Este time é composto por médicos, enfermeiros, auxiliares, fisioterapeutas e perfusionistas. Estes indivíduos precisam estar 24 horas por dia com estes pacientes”, afirma Gaia.
O SUS não oferece o tratamento?
Segundo o Ministério da Saúde, o tratamento conhecido como terapia ECMO não está incorporado ao SUS, mas muitos hospitais de referência usam. “Ressaltamos que Estados e municípios têm autonomia para aplicar o tratamento devido ao sistema tripartite”, disse a pasta.
Há alguns anos, essa técnica foi discutida na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). “Foi discutida, mas não aprovada. Não é paga pelo SUS e mesmo pelo sistema de saúde suplementar (planos de saúde), não é obrigatório. Ainda está em discussão pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Uma parcela dos convênios, que não é pequena, não dá cobertura”, explica Fernandes.
“Poucos hospitais públicos possuem acesso a esta tecnologia, dados os custos elevados do sistema e da necessidade de equipes altamente especializadas na técnica”, complementa Gaia.
O tratamento por ECMO tem cobertura pelos planos de saúde?
Estando presente nas Unidades/Centros de Terapia Intensiva (UTI/CTI), como arsenal terapêutico no suporte à vida, notadamente nas insuficiências e falhas cardíaca e/ou pulmonar, deve ser disponibilizado. “Neste contexto, possui cobertura obrigatória quando disponível nas referidas unidades. Importante ressaltar que não pode haver cobrança adicional ao beneficiário se o equipamento estiver disponível em CTI/UTI de unidade de saúde da rede conveniada de seu plano de saúde”, afirma a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Além disso, conforme a reguladora, considerando-se o conceito da Sociedade Brasileira de Cardiologia, a ECMO pode ser entendida como um dispositivo de assistência circulatória mecânica temporária. “Vale destacar que o rol de procedimentos e eventos em saúde (cobertura obrigatória para os planos de saúde contratados a partir de 02/01/1999 ou adaptados à Lei 9.656/1998) contempla o procedimento de instalação e manutenção de circuito para assistência mecânica circulatória prolongada (toracotomia)”, disse. Portanto, quando realizada via toracotomia, a ECMO, mobilizada para este fim, possui cobertura por estar contemplada no procedimento, na segmentação hospitalar e plano referência.
Atualmente, o Hospital Santa Catarina possui três pacientes em ECMO, mas tem estrutura para a realização de mais procedimentos simultâneos. Segundo Gaia, algumas operadoras, por exemplo, têm coberto os custos do procedimento, mas não todas. Muitas vezes o custo do ECMO precisa ser arcado pelo paciente e família.
Segundo Rafael Robba, advogado especializado em direito à saúde, os planos de saúde negam a cobertura do procedimento, amparados no rol de cobertura mínima obrigatória da ANS. “A única saída é buscar a Justiça para conseguir acesso ao tratamento. Em um momento delicado para a saúde no Brasil, no qual precisamos ampliar o acesso a tratamentos dos pacientes, a agência reguladora definiu que o rol de cobertura dos planos é taxativo, e não exemplificativo, como sempre foi compreendido. No entanto, é cada vez mais necessário que os pacientes tenham amplo e irrestrito acesso aos melhores tratamentos capazes de salvar vidas e que, para isso, a ANS agilize as incorporações de novas condutas terapêuticas nesse momento de agravamento da pandemia”, avalia Robba.
Quanto custa o tratamento particular com ECMO?
No HSC, estima-se que o valor da ECMO pode variar de R$ 50 mil a R$ 100 mil, podendo alterar conforme a complexidade e tempo de internação do paciente.
Enfermeira usou procedimento por 11 dias
Diferentemente do humorista, que utiliza a técnica em razão de comprometimento dos pulmões, a enfermeira Lissa Suguimoto, de 42 anos, fez uso do procedimento por condições cardíacas. Em maio do ano passado, ela foi diagnosticada com covid-19, apresentando sintomas leves, mas no fim de dezembro começou a sentir taquicardia e foi internada no Hospital Santa Catarina. “Sempre fiz check-up e não tenho histórico de problemas cardíacos na família. Fui para o hospital achando que não era algo grave. Mas, após diagnóstico, o médico disse que provavelmente era uma sequela do novo coronavírus. Tive choque cardiogênico (quando o coração perde sua capacidade para bombear sangue em quantidade adequada para os órgãos) que gerou insuficiência cardíaca”, disse.
Antes de realizar a ECMO, Lissa passou por outros procedimentos para que o quadro clínico fosse revertido. “Tentaram vários tipos de tratamento, mas sem sucesso. Fui para a UTI, precisei ser intubada. No último dia do ano, comecei a usar a ECMO. Foram 11 dias com o equipamento, dos 16 que fiquei na UTI. Foi o que realmente salvou minha vida”, afirmou a enfermeira que teve alta em 21 de janeiro, mas se recuperou totalmente depois de mais um mês de fisioterapia para recuperar a capacidade motora. “Tinha dificuldade de andar, no começo. Hoje, já estou recuperada e retomei até ao trabalho”, contou.
Sobre custos, Lissa disse que, no início, teve problemas com a cobertura da terapia. “O plano de saúde cobriu as despesas de internação. A cobertura da ECMO foi negada, no início. Como não faz parte do rol de procedimentos da ANS, a operadora não queria cobrir. Somente depois que entrei com liminar na Justiça o convênio pagou”, explicou a enfermeira que preferiu não dar detalhes de valores.
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