16 ago Consumidor emparedado
Isto É | Marcos Strecker | 13.08.2021
Com a escassez de planos individuais, o cidadão é empurrado para a compra de planos empresariais, chamados no mercado de “falsos coletivos”. Assim, ele fica à mercê das operadoras e sem a proteção contra reajustes abusivos.
A pandemia representou um teste de stress inédito para o sistema de saúde. Se o SUS provou seu valor, os planos de saúde privados mostraram mais uma vez as deficiências da regulação. E essa falta de proteção penalizou especialmente as pessoas que perderam empregos e foram empurradas para a informalidade, sendo obrigadas a participar de um esquema de abertura de empresas fantasmas individuais, as MEIs.
Há poucas opções no mercado fora dos planos de saúde empresariais ou coletivos. Isso porque as grandes operadoras evitam oferecer planos individuais e familiares, ou simplesmente não têm mais essa opção. Essa modalidade é a única em que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o mercado, controla os reajustes anuais a partir de planilhas de custos fornecidas pelas empresas. Também é a única que impede o cancelamento unilateral.
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A brecha que o mercado encontrou foi oferecer planos empresariais, muitas vezes individuais, por um valor menor. A legislação permite isso. Eles são oferecidos por um valor inferior pelos corretores. Por não terem o mesmo controle, sofrem aumentos que diminuem as vantagens iniciais, que são apenas aparentes. A disparidade ficou flagrante em julho passado. Os planos individuais tiveram pela primeira vez um índice negativo de reajuste. Por decisão da ANS, precisarão reduzir as mensalidades em 8,19%. Isso ocorreu por causa da pandemia, pois houve redução no número de consultas (-25,1%), de exames (-14,6%) e de internações (-15,6%).
Clientes são induzidos a abrir MEIs e há a suspeita de que exista uma grande massa de CNPJs inativos. A ANS não tem esse número, nem faz esse controle
Mas esse alívio não alcançou o cliente de planos coletivos, que amargou um reajuste médio de 9,84% nos contratos com até 29 vidas, segundo dados preliminares da ANS. Há casos em que os aumentos chegaram a 16%. Para os planos com mais de 29 vidas, o reajuste médio foi ligeiramente menor: 5,55%. A disparidade nos reajustes colocou mais pressão no mercado dos planos coletivos. Quem está amparado nos contratos feitos pelos empregadores ou por entidades de classe nos planos de adesão ainda conta com algum tipo de negociação com as operadoras. Mas os microempreendedores individuais e seus familiares, que são os chamados “falsos coletivos” no mercado, estão à mercê das grandes operadoras. “Não há negociação entre empresas. Há dominação do mercado que força milhares de pessoas a migrarem para o SUS”, critica Fernando Capez, diretor executivo do Procon-SP.
Fontes do mercado estimam que existam 2,5 milhões de beneficiários em planos de 1 a 4 pessoas. Essa é a parcela mais vulnerável do sistema. Há denúncias de que corretores induzem clientes a abrirem MEIs (um processo simples, que pode ser feito pela internet) apenas para conseguirem contratar planos de saúde. A Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) denunciou esse esquema à ANS, à Receita Federal e ao Ministério Público Federal em 2017. Segundo Rodolpho Ramazzini, diretor da entidade, a ANS redigiu na época a norma para regular as MEIs, o MPF abriu ações e a Receita fez uma varredura nas suas bases, suspendendo 1,4 milhão de CNPJs. “Mas depois disso a fiscalização não foi mais para a frente. Agora, está voltando a acontecer com frequência e em grandes quantidades”, afirma. Segundo ele, há ainda corretores que abrem MEIs sem o conhecimento do próprio cliente. “Isso ainda acontece muito, principalmente com os mais pobres. A gente recebe denúncias de pessoas que contratam o plano empresarial sem entender o processo. Depois de um ano, recebem uma carta da Receita com as taxas atrasadas do MEI, que nem sabiam que existia. Isso cresceu muito de um ano para cá.” A ANS, a quem compete fazer a fiscalização sobre os CNPJs, transferiu essa responsabilidade para as próprias operadoras, o que é visto por especialistas como uma incongruência, já que as companhias não têm interesse em se desfazer desse tipo de cliente. E essa carteira (de MEIs e pequenas empresas) é uma das mais lucrativas para as operadoras.
Os dados são nebulosos, o que é conveniente para as empresas. O Procon paulista, que atua no mercado de 70% dos usuários de planos privados do País, tem liderado a luta para que a ANS apresente os dados dos contratos com empresas que tenham um único titular. A entidade argumenta que nos casos em que haja irregularidade no CNPJ todos os beneficiários devem ser convertidos para a modalidade individual, como preconiza a resolução da ANS de 2017. Mas não há cooperação, critica Capez. “Estamos pedindo transparência para identificar os falsos planos coletivos. CNPJs que estiverem inativos ou tiverem sido criados apenas para finalidade de planos de saúde. Poderíamos beneficiar milhões de consumidores”, afirma. A entidade também entrou com uma ação na Justiça Federal para que a agência fiscalize os reajustes dos planos coletivos. “Registramos aumentos de até 228%”, protesta Capez. O diretor executivo do Procon-SP diz que a estimativa é que 30% do valor das mensalidades dos planos coletivos se refiram a despesas burocráticas, como taxas administrativas e de corretagem. Nos planos coletivos por adesão (13% do mercado), também há um “spread” pouco transparente que embute a margem de lucro e representa despesas administrativas. Fontes do mercado acreditam que ele encarece esses contratos entre 20% e 30%.
A ANS diz que os planos coletivos são “um instrumento contratual firmado entre a operadora e a pessoa jurídica contratante” e defende sua resolução de 2017 que permitiu a contratação de plano empresarial individual. Para a agência, isso “contribuiu para coibir abusos relacionados a esse tipo de contratação, garantindo proteção ao beneficiário do plano de saúde e mais segurança jurídica e transparência no mercado”. Não é a opinião da coordenadora do programa de saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Ana Carolina Navarrete. “O que sabemos, anos depois dessa resolução, é que não fez diferença. As pessoas continuam abrindo CNPJs para contratarem planos de saúde”, diz. Segundo ela, “a primeira pergunta que o corretor faz é se o cliente tem CNPJ. A segunda é a profissão. A corretagem já está orientada para a oferta de planos coletivos, por meio de MEI ou alguma associação de classe”, afirma. Segundo ela, os planos individuais costumam ter preços de entrada maior porque não podem ser reajustados pelos mesmos valores abusivos dos planos coletivos. “No entanto, em dois anos de uso do plano empresarial, contando com os reajustes que ele vai sofrer, o valor já compensa o que o convênio deixou de cobrar na contratação”, explica.
Consumidores reclamam que são orientados a abrirem planos empresariais. É o caso da gerente de vendas Luciene Martini, que se mudou de Fortaleza para São Paulo e precisou contratar um plano com cobertura na cidade. “Os corretores me dizem que a melhor opção são os planos empresariais, que são mais baratos e têm a mesma carteira de atendimento dos planos individuais. Alguns também me orientaram a procurar convênios menores que, ao contrário dos grandes, ainda vendem planos individuais.” A esteticista Antônia Oliveira, de Embu das Artes (SP), abriu uma MEI em 2018 visando obter um plano empresarial para ela e os dois filhos, pois era mais barato do que o individual. Mas, com os reajustes, precisou mudar de operadora. Ouviu que era melhor voltar a contratar um plano com sua PJ. Contratou então um novo plano empresarial por R$ 600 para ela e os dois dependentes, voltando ao valor que pagava em 2018. Se fizesse um plano individual, desembolsaria R$ 1.200. “Quando procurei o convênio, a primeira coisa que me perguntaram foi se eu ainda era MEI. Nem apresentaram propostas de planos individuais. Eu que perguntei, e ouvi que eles não eram vantajosos. Espero não ter de procurá-los daqui a dois anos para refazer o plano, mas sei que os reajustes a partir de agora não serão baixos.”
Para Ana Carolina, do Idec, o ideal seria que a ANS regulasse os planos coletivos “de verdade”. Para ela, há a ideia de que a ANS não precisa controlar os planos coletivos, pois as empresas estão negociando diretamente com os clientes, o que não acontece na prática. Segundo ela, não há poder de barganha em nenhum contrato, nem nos pequenos, nem nos grandes. Além disso, é importante enfrentar o uso indevido de MEIs para substituir planos que não interessam às companhias. “Os planos via MEI, na prática, são individuais. A questão é que a ANS resolveu fechar os olhos para a falta de oferta dos planos individuais e ratificar, através da regulação, a possibilidade de contratar planos de saúde para a família sem a mesma proteção da regulação pública do individual.”
Colaborou Vinicius Mendes
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