30 set Discussão sobre o rol da ANS está longe de acabar e judicialização segue em alta
Futuro da Saúde | Rafael Machado | 28/09/2022 | Fábio Santos
Lei que derruba o rol taxativo deve provocar aumento da judicialização. Tribunais buscam adotar critérios técnicos e fundamentados.
A judicialização da saúde é um dos principais temas em mesas, debates e eventos que discutem a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e da saúde suplementar. Em 2021, o Brasil registrou mais de 395 mil novos processos judiciais sobre questões relacionadas à saúde, de acordo com o Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Do total, 150 mil eram direcionadas à saúde suplementar sobre os mais diferentes temas, como acesso a terapias e medicamentos não cobertos pelos planos de saúde, questões contratuais, de carência, rede credenciada, mensalidade, entre outros. No entanto, a judicialização muitas vezes é utilizada de forma individual para obter tratamentos, o que ao longo prazo pode afetar o acesso da população como um todo.
Mesmo que um paciente tenha legitimidade em buscar acesso a esses tratamentos, as decisões de judicialização da saúde nem sempre levam em consideração questões orçamentárias. Com isso, torna-se inviável ao setor provisionar os gastos ao longo do ano, que é feito baseado no rol de procedimentos, no custo com prestadores de serviços e possíveis oscilações no número de beneficiários e do mercado. Levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) junto à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), aponta que a judicialização das operadoras movimentou R$ 11,3 bilhões entre 2015 e 2020.
Os planos de saúde argumentam que, dessa forma, é impossível trabalhar sem repassar o valor ao usuário final. Com a recente aprovação da lei que amplia a possibilidade dos pacientes terem coberturas que não constam na lista de procedimentos obrigatórios, as operadoras apontam que a tendência é o cenário piorar: mais custos aos beneficiários e empresas, menos pessoas com convênios médicos – o que impactaria no aumento da demanda ao SUS. Planos de saúde e entidades estudam entrar com representação no Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a lei.
Advogados e juristas acreditam que apesar dessa questão do entendimento sobre o rol da ANS não ter chegado ao fim, a judicialização da saúde tende a aumentar. Mesmo com uma redução do período de revisão do rol de procedimentos e análise de novas tecnologias por parte da Agência, que antes ocorria a cada 2 anos e passou a ser no máximo de 270 dias com a aprovação de uma lei em março deste ano, assim como a adoção de embasamentos científicos e técnicos por parte do Judiciário, outras soluções são necessárias para chegar a um consenso, seja sobre acesso ou orçamentário.
A judicialização e a saúde dos planos
A judicialização na saúde em grande parte está ligada ao acesso de medicamentos e tratamentos. Através de ações, indivíduos ou coletivos buscam por soluções para suas doenças ou condições de saúde. Nos anos 90, a busca por medicamentos para o controle do HIV ganhou destaque no Judiciário e, com o aumento exponencial de casos, houve a necessidade de incluir os medicamentos no SUS e criar políticas públicas específica para essa população.
“Para além dos aspectos positivos, como esse de fomentar políticas públicas, [a judicialização] também trouxe algumas consequências do ponto de vista da organização e economicidade do sistema. O sistema de saúde, público ou privado, tem orçamento inelástico, com valores que estão colocados ali para realizar as suas atividades. Cada vez que tem uma judicialização você tira de algum lugar, que ninguém sabe ao certo da onde é – mas de certo do orçamento da Saúde –, para destinar para A, B ou coletividade, dependendo do tipo de ação”, explica o desembargador João Paulo Gebran Neto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
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Em parte dos casos, o efeito é contrário. Ao atender demandas individuais de pacientes, outros tantos podem ficar desassistidos de cuidados, já que é preciso redirecionar o orçamento. No caso da saúde suplementar, o cenário é um pouco diferente. As possibilidades variam entre repassar os custos aos beneficiários ou tornar insustentável financeiramente o funcionamento da operadora.
Mesmo que pareça alarmismo, é preciso ter em mente que a maioria dos planos de saúde não possui milhões de vidas sob seus cuidados. Além disso, um levantamento da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde) aponta que 267 operadoras estão trabalhando no vermelho, onde as despesas não cobrem as despesas. Elas cuidam de 33% dos usuários com planos de saúde no brasil. As empresas de pequeno porte são as mais afetadas, e metade delas está atuando nessas condições.
Com a sanção da lei 14.454/22, que amplia a cobertura de tratamentos para além do estabelecido no rol, essa situação pode se agravar ainda mais. “Agora a lei trouxe algo mais aberto, e vamos ter que trabalhar por isso. Inevitavelmente, isto é inexorável, ela vai impactar no custeio desses planos de saúde, e em alguma medida pode implicar em exclusão de usuários, porque vai ficar mais caro, e também impactos sobre o SUS com a chegada de novos usuários, que até o momento estavam cobertos pela saúde suplementar”, argumenta Gebran Neto.
A lei pode trazer impactos na judicialização, já que pacientes que não tenham acesso a tratamentos fora do rol buscarão entrar com processos amparados legalmente. Apesar de ter critérios estabelecidos, eles são considerados brandos, principalmente ao que se refere sobre a necessidade de ter “comprovação científica”. A ANS estuda lançar um decreto para estabelecer quais evidências são necessárias, a fim de minimizar abusos e que medicamentos com baixa eficácia sejam utilizados – e custeados pelos planos.
Como o Poder Judiciário tem trabalhado
“Nós temos que tratar das evidências científicas de um modo muito sério. Com isso, ao longo desses mais de 10 anos em que o debate da judicialização vem ganhando uma força muito grande no Brasil, começamos a reforçar a ideia de que tínhamos que mudar a racionalidade até então existentes nas primeiras ações, muito fundada na ‘esperança’, ‘córtex frontal’ ou ‘com a empatia do decisor com a pessoa que está postulando’, para um raciocínio adequado que deve ser jurídico e, como esse tema é transversal, também técnico”, analisa o desembargador.
O Poder Judiciário vem trabalhando para que as decisões relacionadas à saúde sejam embasadas em critérios técnicos e científicos, levando em conta não só a orientação médica, mas os pareceres científicos, os posicionamentos de outras agências reguladoras e a jurisprudência sobre o tema. Mesmo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através do Sistema e-NatJus, compilou decisões e pareceres que, apesar de não serem obrigatórios, podem auxiliar os juízes na tomada de decisão.
Contudo, a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o rol ser “taxativo, com exceções” trazia uma nova perspectiva. Isso porque além de ter a medicina baseada em evidências como princípio, solicitava que pacientes e seus médicos comprovassem que os tratamentos disponíveis dentro do rol não eram efetivos para aquele caso. Com a aplicação da nova lei esse critério pode cair por terra, já que não é previsto.
Gebran Neto avalia que “a forma que o Poder Judiciário adentrou nesse tema, e sei que a saúde é muito sensível e talvez seja o direito fundamental mais sensível de todos, assumiu para si a tarefa de tomar decisão sobre políticas públicas, de incorporação ou não de tecnologias, é algo que não tem praticamente precedentes no mundo. Pelo menos não nesse volume e nem em ações individuais”. Isso porque além de todos os pontos indicados, as decisões não levam em conta a custo-efetividade e a Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS), que além de certificar os dados apresentados de eficácia e segurança, analisam o impacto orçamentário para os sistemas de saúde.
Ponto de vista do usuário
Do ponto de vista do beneficiário de plano de saúde, a questão da custo-efetividade é secundária. Quem está com uma doença ou condição que requer tratamento, busca soluções rápidas e efetivas, e não leva em consideração o custo para os sistemas. Advogados em defesa de pacientes argumentam que, além do direito à saúde garantido na constituição, a lista de procedimentos dos planos de saúde sempre foi exemplificativa, constando apenas o mínimo necessário.
“O entendimento dos tribunais e do STJ era um pouco dividido, mas em geral tribunais do Estado, principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, iam no sentido de que se o médico prescreveu e você não tem uma prova contrária de efeito colateral, a operadora tem que cobrir. Porque afinal, o contrato de plano de saúde tem o objetivo de garantir a busca da saúde do beneficiário”, afirma o advogado Fábio Santos, especialista em Direito à Saúde e sócio do escritório Vilhena Silva Advogados.
Com a lei que derruba o rol taxativo, amplia-se as possibilidades dos usuários conseguirem acesso a medicamentos e terapias. Contudo, o advogado acredita que a judicialização ainda seguirá sendo o caminho, já que em sua análise dificilmente os pacientes vão conseguir comprovar para a operadora a necessidade de tratamento e ela aceitar de “bom grado”.
“Imagino que não vá diminuir a judicialização porque o texto não define totalmente as situações em que um beneficiário terá acesso a um medicamento ou tratamento fora do rol. Ele dá uma margem de interpretação porque estabelece dois requisitos: ou tem uma eficácia na medicina baseada em evidências ou tem validação pela Conitec ou órgãos de avaliação de tecnologias que tenham renome em outro país e incorporados para a população”, avalia. Para o advogado, é preciso esperar para entender como os júris vão se portar diante das decisões.
Soluções viáveis
Fora da questão da judicialização, é preciso propor caminhos para que ela seja evitada cada vez mais. Fábio Santos avalia que a celeridade da ANS para avaliar a inclusão de novos procedimentos no rol é essencial para ampliar o acesso. A Agência tem trabalhado nesse sentido. Recentemente, além da redução do prazo para análise de medicamentos e terapias, também houve em julho uma decisão tornando ilimitadas as consultas com psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeuta.
Também houve uma ampliação no que diz respeito ao tratamento de pacientes com transtorno globais de desenvolvimento, o que inclui o espectro autista. Tais ações da Agência vieram na sequência de protestos, debates e discussões sobre o rol da ANS, o que mostra que a pressão social exercida por entidades e familiares de beneficiários teve um papel importante na garantia desses direitos.
Outra solução para reduzir a judicialização e aumentar o acesso é proposta pela advogada Ana Claudia Pirajá Bandeira, presidente da Comissão Especial de Direito da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): “Cada vez mais a medicina está mais evoluída. Então, vai ter que trabalhar no sentido de diminuição de cargas tributárias ou impostos. Às vezes um medicamento é caro porque a matéria-prima é cara, mas sabemos que tem alguns medicamentos que chegam muito caro no país e que talvez tivesse que ser rediscutido para dar acesso à sociedade que precisa”.
Pirajá também avalia que as mudanças propostas pelo STJ e pela lei do rol não devem ter muito impacto no número de ações contra os planos de saúde. Contudo, ela explica que houve uma mudança crucial sobre a forma que se constrói um processo para ter acesso a medicamentos e outras terapias que ainda não foram avaliadas ou não estão disponíveis.
“Pelos núcleos que eu trabalho e pelos debates, as pessoas continuaram a entrar na Justiça. Mas elas começaram a fundamentar mais os processos judiciais. Antes entrava e juntava uma declaração do médico e pronto. Agora ela traz um laudo, um parecer e exames complementares mostrando o benefício ao paciente. Temos uma ação mais fundamentada com maior condição de chegar ao fim com uma decisão procedente”, aponta a advogada.
É preciso calma
Na visão do advogado José Luiz Toro da Silva, fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Saúde Suplementar (IBDSS), apesar das questões do rol da ANS terem passado pelo Judiciário e Legislativo, é preciso ter paciência e analisar como os júris do país vão se portar e decidir, entendendo quais os critérios serão levados em consideração.
“Essa lei traz alguns conflitos com a própria lei dos planos de saúde e outras normas, como o Código de Defesa do Consumidor e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Vai demandar algum tempo para a gente então se adaptar para essa nova sistemática, até que tenha uma jurisprudência, decreto presidencial ou resolução da ANS estabelecendo melhor isso. Da forma que está a lei, vai suscitar muitas dúvidas e controvérsias”, afirma o advogado.
Toro aponta que “não se interpreta a lei aos pedaços” e existem incongruências e conflitos por todos os lados. Como exemplo, cita o caso: um medicamento que não foi aprovado pela Conitec para a inclusão no SUS, mas um juiz com apoio técnico e médico avaliar que as evidências científicas são suficientes para dar parecer favorável ao paciente. Ainda, relembra que todo medicamento utilizado no país deve ter aval da Anvisa.
No entanto, Toro avalia que o número de processos sobre o tema é condizente ao número de usuários de planos de saúde. “Se você levar em consideração que estamos falando de um setor que já está beirando 50 milhões de beneficiários, 150 mil ações também não são tantas assim. A ANS também exerce um papel muito importante nas chamadas Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), ou seja, há uma possibilidade das pessoas não ingressarem em juízo, mas procurar através da Agência resolver o seu problema”, propõe como uma das soluções para o tema.
Ele ainda avalia que o período eleitoral e o Brasil polarizado politicamente torna o ambiente inviável para se debater a judicialização da saúde. Contudo, é preciso que a discussão siga para trazer definições que auxiliem todos os envolvidos a manter a sustentabilidade dos sistemas e o acesso dos pacientes aos tratamentos.
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