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Valor Econômico | Isabela do Carmo
Metade desses casos refere-se a tecnologias que não estão previstas no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
A dificuldade para obter o tratamento médico ou medicamento adequado tem levado muitos clientes de planos de saúde ao Judiciário e a metade dos casos refere-se a tecnologias que não estão previstas no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Essa realidade é confirmada pela recente pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “Diagnóstico da Judicialização da Saúde Pública e Suplementar”.
A pesquisa mostra que, apenas entre agosto de 2024 e julho de 2025, o Judiciário recebeu 123 mil novos casos na primeira instância e 108 mil na segunda relacionados à saúde suplementar. O Estado de São Paulo concentra a maior parte desses litígios, reunindo aproximadamente 93 mil ações – número superior à soma dos processos do Rio de Janeiro e da Bahia juntos.
Nesse cenário, segundo o estudo, as pautas que mais chegam ao Judiciário envolvem medicamentos e tratamentos médicos, responsáveis por 69% das ações – metade delas referentes a procedimentos fora do rol da ANS. Pedidos de indenização por danos materiais e morais somam 18,7% dos casos. Já as demandas relacionadas ao Transtorno do Espectro Autista (TEA) representam 10%, enquanto as ações sobre câncer ou terapias oncológicas correspondem a 16,5% – como a petição inicial pode conter múltiplos pedidos, o percentual total ultrapassa 100%.
A pesquisa também chama a atenção para o tempo médio de tramitação: 17,1 dias entre o ajuizamento da ação e a primeira liminar, 253 dias da petição inicial até a sentença e 293 dias da liminar até o julgamento de mérito. Pelo levantamento, as liminares geralmente são concedidas – em 69,5% dos casos. Apesar do grande volume de processos, o índice de conciliação na Justiça Estadual é extremamente baixo: apenas 3,8%.
Tanto a morosidade na autorização quanto a negativa de um exame fundamental para definir o tratamento correto foram situações vividas pela pedagoga Andréia Gonçalves, de 53 anos. Durante um exame de rotina, a paulistana descobriu algo que mudaria sua trajetória: em junho deste ano, recebeu o diagnóstico de câncer de mama. “Foi tudo muito rápido, os exames, a biópsia, o resultado e, em seguida, a cirurgia. Fiz o procedimento no dia 1º de agosto. Até então, tudo estava indo bem”, lembra.
A situação mudou quando a médica solicitou o Oncotype, exame de análise molecular realizado a partir do tumor para avaliar o risco de recorrência e a indicação – ou não – de quimioterapia. A recomendação ocorreu após um exame genético apontar a possibilidade de um tumor raro em 30% do material analisado.
Inicialmente, o convênio de Andréia, da operadora Amil, chegou a sinalizar autorização, mas depois a liberação foi negada. “A alegação deles foi: ‘O que não está no rol da ANS não é coberto’. E não autorizaram o Oncotype. Foi então que acionei a Justiça para pedir uma liminar”, diz.
A pedagoga obteve tutela de urgência, decisão que viabilizou a realização imediata do exame e garantiu o reembolso integral dos R$ 18,5 mil pagos. A urgência era reconhecida não apenas pela paciente, mas também pela equipe médica: sem o resultado do Oncotype, não era possível definir se o tratamento deveria se iniciar pela quimioterapia ou pela radioterapia.
Na decisão, o juiz Guilherme Dezem, 44ª Vara Cível de São Paulo, destaca que “a negativa do exame pode causar diversos prejuízos materiais e morais à autora, uma vez que este exame é crucial para determinar a continuidade do tratamento”. E que “os documentos médicos anexados à petição inicial indicam a gravidade da situação e a necessidade do exame” (processo nº 0022697-64.2025.8.26.0100).
Andréia explica que já tinham se passado 60 dias da cirurgia e ainda não havia conseguido fazer o exame porque o convênio não autorizava. “Quando a liminar saiu, o juiz determinou o cumprimento imediato. O resultado leva cerca de um mês para ficar pronto. Eu estava no limite [para começar o tratamento]”, afirma.
“Liminar foi decisiva para garantir o exame e permitir o início do tratamento”
— Andréia Gonçalves
O laudo trouxe alívio. O tratamento indicado foi radioterapia e hormonioterapia, evitando um protocolo mais agressivo e desnecessário. O processo judicial ainda tramita, mas, segundo ela, a liminar foi decisiva para garantir o exame e permitir o início do tratamento correto.
Advogado especializado em Saúde Rafael Robba, do escritório Vilhena e Silva
Para Rafael Robba, sócio do escritório Vilhena Silva Advogados, os dados recentes do CNJ ilustram o que se vê na prática. “O volume de ações é alto. A maioria dos pacientes que necessitam de tratamentos mais completos, especialmente quem tem doenças graves ou crônicas, com muita frequência se depara com negativas das operadoras”, diz ele, acrescentando que as recusas ocorrem por diferentes motivos.
Um deles, afirma, é o tratamento não estar no rol da ANS. Há ainda situações em que o procedimento é autorizado para uma doença, mas não para outra. “Há questões envolvendo medicamentos off label [fora da bula] e divergências entre o médico assistente e o auditor da operadora.”
Para Robba, o Judiciário, na maioria dos casos, tem decidido a favor dos consumidores. “A exceção são tratamentos excluídos da cobertura, medicamentos experimentais ou que não são regulamentados pela Anvisa – esses realmente ficam fora da obrigação. O mesmo vale para procedimentos meramente estéticos”, diz. Por outro lado, afirma, quando há prescrição clara e necessidade efetiva, mesmo fora do rol da ANS, “o Judiciário costuma obrigar a operadora a cobrir”.
Ele chama atenção ainda para um ponto específico do levantamento do CNJ: a baixa taxa de conciliação. Mostra, afirma o advogado, que asoperadoras têm pouca disponibilidade para flexibilizar coberturas e compreender a necessidade individual de cada paciente. “Assim, o Judiciário acaba sendo uma das poucas alternativas para garantir o tratamento. O que percebemos é que o Judiciário se tornou mais rigoroso, buscando garantir ao consumidor exatamente aquilo que o plano de saúde deveria cobrir.”
Em nota ao Valor, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz que orienta que todas as operadoras associadas sigam integralmente o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – incluindo exames, cirurgias e demais procedimentos relacionados ao diagnóstico e tratamento do câncer. E que segue comprometida com as melhores práticas e atenção ao cumprimento das diretrizes regulatórias do setor.
A Amil, também por nota, afirma que não houve falta de assistência à pedagoga Andréia Gonçalves, mas realizou uma avaliação de cobertura extracontratual do exame solicitado e a equipe de Medicina Baseada em Evidências concluiu que não há evidências científicas suficientes sobre seus resultados. “O exame não cumpre critérios técnicos definidos pelo STF, em decisão de 18 de setembro, para autorização de coberturas não previstas no rol da ANS”, diz.