22 fev O que a venda dos planos da Amil revela sobre um problema crônico do mercado de saúde?
Jota | Thaís Kechichian Alonso | 22/02/2022
Em 2021, a Amil transferiu sua carteira a uma empresa do mesmo grupo, que está sendo vendida pelo controlador
Desde a transferência da carteira de planos de saúde individuais e familiares da Amil para a Assistência Personalizada à Saúde (APS), que foi autorizada em dezembro pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), e passou a valer no primeiro dia deste ano, os mais de 340 mil consumidores ligados a esse modelo de contrato passaram a ter insegurança sobre o futuro deles e do próprio convênio médico. E não é para menos, pois uma série de desdobramentos tem gerado preocupação no mercado.
Já no final de 2021, antes mesmo da aprovação da ANS, os segurados da Amil perceberam entraves nos agendamentos de exames e consultas e notaram um desmonte da rede credenciada ou dificuldades para acessar hospitais e laboratórios. E o problema não parou por aí.
Recentemente, a UnitedHealth, que controla a Amil e a APS, comunicou ao mercado que está se desfazendo da segunda empresa e chegou a passar o controle para a Fiord Capital, fundada há apenas dois meses pelo sérvio Nikola Luikic. Diante da ausência de documentação e a repercussão negativa da operação, a ANS suspendeu a mudança de gestão, até que houvesse o repasse de todas as informações pertinentes. Pelo menos por enquanto. Ou seja, após a apresentação desses documentos, a APS tem grandes chances de voltar para as mãos da Fiord Capital.
A APS nunca foi uma empresa de grandes proporções e renome no mercado. Possuía, até engolir a atual carteira da Amil, apenas 17 mil beneficiários. Essa transação gerou muita desconfiança entre especialistas e órgãos de defesa do consumidor. Afinal, qual seria o interesse de uma pequena empresa em receber uma carteira notadamente deficitária? No mercado, se desfazer de uma carteira de clientes e largá-la nas mãos de outra empresa, correndo o risco de que o encerramento das operações ocorra sob a gestão de terceiros, não é incomum.
Não se pode perder de vista que o ponto crucial para contratação de um plano de saúde são os hospitais pertencentes à sua rede credenciada, e a transferência da carteira de beneficiários para outra empresa de porte infinitamente menor causa ainda mais estranheza, pois revela a manobra repugnante das empresas de se desfazer de uma carteira supostamente menos rentável.
E as notícias não melhoram. Questionado sobre a manutenção da rede de atendimento, o dono da Fiord Capital não se posicionou. A gigante UnitedHealth, que lá atrás, em 2012, comprou o controle da Amil por R$ 10 bilhões, também não se posicionou.
O maior receio dos consumidores é que a fiscalização realizada pela ANS se mostre deficitária e, no final, os beneficiários dos planos individuais tenham seus planos cancelados de forma ilegal e abusiva.
Nesse sentido, os clientes dessa carteira rogam às entidades competentes que fiscalizem e acompanhem de perto essa transição para que atuem com rigor e proíbam eventuais artimanhas. Nunca é demais destacar que uma parcela significativa da carteira da Amil, que é antiga, é composta por idosos e pessoas em tratamentos complexos de saúde, e que hoje se encontram reféns do bel prazer dessas empresas.
Vale enfatizar que, desde 2009, existe um acordo de cooperação técnica entre o Ministério Público e a ANS, justamente com o intuito de proteger os consumidores de práticas lesivas. Mas, na prática, a intervenção atual da ANS no sentido de suspender a venda da APS para a Fiord Capital é apenas temporária.
Em tese, a ANS, ao autorizar a transferência parcial da carteira, deveria ter analisado a descrição pormenorizada dos critérios para fracionamento da carteira, o custo da transação, o detalhamento do acordo operacional e, principalmente, prever que tipo de impacto causaria para o mercado e para os consumidores.
No entanto, não se tem conhecimento de que todas essas análises foram devidamente realizadas, ainda mais quando se verifica o caminho adotado pelas empresas envolvidas nessa transação.
Ao que tudo indica, a ANS teve como premissa para autorização da transferência o fato de que tanto a Amil quanto a APS permaneceriam inseridas no mesmo grupo econômico. Porém, em um segundo momento, diante dos desdobramentos que chegaram a público, a postura reativa da ANS foi suspender temporariamente a venda da APS para a Fiord Capital. A pergunta que fica é: se o caso não ganhasse tanta notoriedade, será que a conduta da autarquia seria reconsiderada?
A história já foi escrita uma vez e estamos seguindo o mesmo roteiro de um problema anunciado. É preciso lembrar o caos vivido em 2013, quando ocorreu a transferência da carteira de beneficiários da Golden Cross para Unimed Rio. Naquela ocasião, os consumidores experimentaram interrupção nos tratamentos em curso, descredenciamentos repentinos de hospitais, laboratórios, com prejuízos inestimáveis.
Nada poderia ser mais desesperador aos consumidores do que a inviabilidade de atendimento junto à rede anteriormente contratada e a ausência de providência dos órgãos competentes, que forçam esses beneficiários a se socorrerem do Poder Judiciário para tentar garantir seus direitos e minimizar a terrível sensação de desamparo e insegurança dos tempos sombrios de outrora.
THAÍS KECHICHIAN ALONSO – Advogada especialista em direito à saúde. Possui pós-graduação em Direito Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus e é sócia do escritório Vilhena Silva Advogados.
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