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Planos de saúde do tipo ‘falso coletivo’ crescem 58% e judicialização aumenta

Em cinco anos, número de usuários saltou de 3,3 para 5,2 milhões; modalidade traz garantias mais frágeis a grupos com menos de 30 pessoas.

BRASÍLIA – Planos de saúde conhecidos como “falsos coletivos”, que trazem garantias mais frágeis para usuários e são ofertados para grupos com menos de 30 pessoas, cresceram 58% em cinco anos, mostra uma pesquisa inédita obtida pelo Estado. Preparado pelo Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho revela que entre 2014 e 2019 o número de pessoas vinculadas a esse tipo de contrato saltou de 3,3 milhões para 5,2 milhões.

Hoje, a modalidade representa 11% do mercado. Há cinco anos, o porcentual era de 6,6%.

“Com o fim da oferta de planos individuais pelas empresas, usuários acabam sendo empurrados para esse tipo de produto, na esperança de ter garantia de atendimento médico quando necessário”, conta o coordenador do estudo, o professor Mário Scheffer. O crescimento dos planos “falsos coletivos” ganha ainda maior destaque quando se analisa o mercado como um todo. No mesmo período, o número de pessoas com planos de saúde caiu de 50 milhões para 47,3 milhões. “Essa foi a única modalidade de contrato que registrou crescimento”, completa o professor.

Além da expansão no mercado, os “falsos coletivos” estão mais fragmentados. A média de pessoas em cada plano caiu de forma expressiva no período analisado. Passou de 6,2 pessoas por contrato para 4,5.

Scheffer avalia que a mudança do mercado levou a outro fenômeno, também acompanhada pela Faculdade de Medicina da USP: o aumento de ações na Justiça dos usuários contra planos de saúde. “Essa era uma bomba que havia tempos sabíamos que ia estourar. O processo começou.” A proporção de ações propostas contra planos de saúde a cada 10 mil usuários passou de 4,18 para 12,73 entre 2011 e 2018. As queixas cresceram num ritmo muito mais alto do que o universo de pessoas com planos.

Para fazer um contrato batizado de “falso coletivo”, basta que alguém do grupo com menos de 30 pessoas tenha um CNPJ. Geralmente composto por familiares, conhecidos ou pequenos empreendedores, o plano tem como atrativo inicial uma cobertura médica considerada aceitável e um preço mais reduzido. As dificuldades, no entanto, se instalam com os reajustes.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) determina que os reajustes são únicos para essa modalidade de contrato. O percentual é definido pela operadora, aplicado uma vez por ano. “O problema é que a ANS não faz um controle de como esse reajuste é realizado”, conta Scheffer.

Num documento oficial, a própria autarquia reconhece falhas na forma do reajuste. De acordo com a nota, de 2017, a ANS observa que determinadas operadoras usavam fatores estatísticos para impulsionar os reajustes “mesmo que a sinistralidade do período seja inferior à meta de sinistralidade estipulada pela operadora.”

Em 2019, o reajuste médio dos falsos coletivos foi de 14,74%. Bem acima dos 10% determinados para reajustes individuais e da variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no período, que foi de 4,66%.

“Grande parte do aumento das ações na Justiça é provocada por pessoas que consideram abusivos os reajustes”, avalia Renata Vilhena, especializada na área de planos de saúde. Ela conta que na Justiça costuma requisitar as justificativas contábeis das empresas para os aumentos aplicados a seus clientes. “Nunca recebemos essas informações.”

O estudo da USP traduz em números a experiência de Renata. Das 5,2 milhões de pessoas vinculadas a contratos falsos coletivos, 4,4 milhões (o equivalente a 86%) sofreram reajuste superior ao aumento das mensalidades de planos individuais. Uma das operadoras, que concentra 20% dos clientes, o reajuste foi de 18,9% – 8,9% a mais do que o reajuste do plano individual.

Usuário sente reclamações no próprio bolso

O advogado Eliezer Domingues Lima Filho sentiu no próprio bolso o peso das reclamações feitas também por seus clientes. Como não achou no mercado um plano individual – cujas regras de cobertura, reajustes e rescisões estão bem claras na lei que regulamenta o setor –, ele e outros sete integrantes da família contrataram um plano batizado de “falso coletivo.”

Há dois anos, no entanto, diante dos aumentos considerados excessivos, ele também recorreu à Justiça. Mesmo com uma liminar garantindo reajuste bem abaixo do que havia sido determinado pela operadora, os problemas persistiram. “A empresa continuou cobrando aumentos. E se recusando a prestar atendimentos”, conta Eliezer. A Justiça determinou multas sucessivas – que chegaram a um valor de R$ 400 mil.

“O que teria ocorrido se não fosse advogado? Talvez outra pessoa teria desistido no meio do caminho, diante de tamanha pressão”, ele diz. Nessa queda de braço, conta, o sogro de Eliezer teve recusado um atendimento numa consulta de acupuntura. “E se fosse algo mais grave? Mais caro?”

A lei permite que operadoras de planos de saúde rescindam o contrato unilateralmente, no momento da renovação – o que ocorre depois do primeiro ano de aniversário. Uma estratégia também conhecida é o reajuste das mensalidades em porcentuais elevados.

Para Renata, esse embate entre operadoras e clientes somente se resolveria com uma mudança na lei e a obrigação de empresas de ofertarem os planos individuais. A advogada avalia ainda que o mercado aos poucos vai se alterando – para pior.

“Como as mensalidades dos planos coletivos aumentam de forma expressiva, as pessoas acabam migrando para pacotes mais baratos”, diz. “A rotatividade aumenta, e mesmo assim, planos continuam com preços altos.” Um dos clientes, por exemplo, com 61 anos, paga mensalidade de R$ 10 mil. “Quem são as pessoas que conseguem arcar com um valor tão elevado?”

Scheffer, no entanto, avalia que a mudança será outra. “Há movimentação intensa de planos para reduzir as exigências de cobertura. Ofertar planos com cobertura limitada, um novo engodo para o consumidor.” Por enquanto, Scheffer afirma que os reajustes de planos estão fora de controle. “Os indicadores são distintos, as regras são confusas e pouco transparentes.”

Procurada, a ANS não se manifestou. A Fenasaúde, que representa 16 grupos de operadoras responsáveis por 36% dos beneficiários de planos, atribuiu a concentração dos contratos à regulação do setor e argumentou que o reajuste dos contratos é norteado por regras da ANS. De acordo com a entidade, os porcentuais aplicados “buscam preservar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e refletem aumentos nos custos médico-hospitalares.”

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A federação defendeu ainda a atualização das normas que regulam o setor de saúde suplementar, de forma a que mais produtos possam ser ofertados no mercado. Sobre a nota técnica da ANS, a Fenasaúde argumentou que a realidade analisada era de 2013 e 2014, distante do que ocorre atualmente. A entidade observou ainda que o texto da ANS se refere a “algumas operadoras”, não a todo o setor. “Resta claro que se trata de exceção e não da regra”, disse a entidade, em nota.

A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) atribuiu o aumento de planos com menos de 30 beneficiários ao momento pelo qual o País passa, favorável, na avaliação da associação, ao surgimento de microempreendedores. A associação afirmou ainda orientar suas associadas a cumprir integralmente as regras determinadas pela ANS.

 

Lígia Formenti, O Estado de S.Paulo



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