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Recuperação dos sinais vitais do setor da saúde

Valor Econômico | Simone Goldberg

Recomposição do orçamento público para a saúde e retomada do equilíbrio do setor privado tiram setor da UTI, mas recursos ainda são insuficientes.

 

O setor de saúde vive momentos de expectativa. De um lado, a saúde pública, única alternativa para cerca de 150 milhões de brasileiros, lida com o desafio do subfinanciamento. De outro, 51 milhões de beneficiários da saúde suplementar e as operadoras de planos – estas últimas protagonistas de um movimento recente de cancelamentos unilaterais de contratos – aguardam a votação, no Congresso Nacional, de projeto que altera a Lei no 9.656, de 1998, chamada de Lei dos Planos de Saúde, que influenciará a situação de ambos.

“Estamos numa tendência de reversão da necessidade de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Temos o maior sistema universal do mundo sem ainda uma base ideal de financiamento”, salienta a ministra da Saúde, Nísia Trindade. O envelhecimento populacional, a prevalência de doenças crônicas, as diferentes formas de emergências e a incorporação de novas tecnologias, acrescenta ela, vêm exigindo incremento de gastos do governo com saúde.

O orçamento total do Ministério da Saúde (MS) para 2024 é de R$ 236,4 bilhões, com R$ 222,9 bilhões destinados a Ações e Serviços Públicos em Saúde (ASPS). Graças à revogação da Emenda Constitucional 95, conhecida como emenda do teto de gastos, e a volta do piso constitucional que vincula 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União para a saúde, houve um adicional de R$ 40 bilhões para ações da área neste ano.

 

Infográfico: Mário Canno

No ano passado, segundo o ministério, a mudança do regime fiscal já havia trazido mais recursos. A PEC da Transição (2022/2023) e a Lei Complementar 200 garantiram R$ 182,8 bilhões para ASPS, de um total de R$ 194,7 bilhões para a pasta. Trindade lembra que recursos garantidos pela PEC da Transição permitiram o restabelecimento de programas que estavam sob risco de descontinuidade, como Farmácia Popular, Mais Médicos, Saúde da Família, Saúde Indígena, HIV-Aids, entre outros.

 

Embora o governo tenha, no fim de julho, congelado R$ 4,4 bilhões da verba do ministério, além de determinar um “faseamento de gastos” até dezembro, para atender às exigências do arcabouço fiscal, o piso constitucional para ASPS não será afetado. O impacto será em despesas de custeio e investimento.

 

O ministério, afirma Trindade, vem sensibilizando o Congresso Nacional e a sociedade para que a arrecadação do chamado “imposto do pecado” — o Imposto Seletivo, que incidirá sobre tabaco, bebidas alcoólicas e itens de alto teor de açúcar — vá para o SUS. “São produtos que aumentam o risco de diabetes, hipertensão, câncer e infarto. Esses recursos podem contribuir para a expansão do atendimento especializado e ações de prevenção.”

 

Infográfico: Mário Canno

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Uma das prioridades atuais do MS é a atenção primária. Ele apresentou um novo modelo de cuidado para a Estratégia Saúde da Família, que permitirá a extensão do horário de atendimento e o acesso em horários noturnos. Na atenção especializada, foi ampliado o uso da telessaúde, num contexto de digitalização do SUS, outra frente em expansão, assim como a inovação. Trindade ressalta a melhora nos indicadores. A imunização infantil, por exemplo, subiu em 13 das 16 principais vacinas do calendário no ano passado, o número de equipes da Saúde da Família cresceu em mais de dois mil e o número de profissionais do programa Mais Médicos saltou de 13 mil para 25 mil.

 

Os serviços credenciados para atenção especializada e de cirurgias eletivas também aumentaram em 2023 em relação ao ano anterior: mais de 30 mil na primeira e de 3,5 milhões para 4,2 milhões na segunda. “O compromisso de nosso governo com a saúde se mantém para 2024 e 2025, como revelado pela preservação do piso constitucional”, frisa a ministra.

 

Apesar da melhora, a saúde pública deveria receber mais investimentos públicos, avalia o presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES), Francisco Funcia. “Dados internacionais mostram que os dispêndios da União, Estados e municípios em saúde são cerca de 4% do PIB. Nos países desenvolvidos, o percentual é acima de 7%.”

 

Ele lembra que é a União quem tem a menor participação nas despesas públicas totais em saúde, com menos da metade, embora detenha mais de 50% de toda a receita disponível arrecadada pelos três entes da federação. “É quem tem capacidade financeira para aumentar esses gastos”, afirma.

 

Para Funcia, as verbas para ASPS, que têm recursos mínimos obrigatórios, podem sofrer revés em 2025, devido às pressões do arcabouço fiscal: “O risco existe diante das manifestações das autoridades econômicas”. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já disse publicamente que debates sobre desvinculações de despesas federais vêm ocorrendo no governo.

 

Outro que reforça a ideia de mais investimentos públicos em saúde é o ex-ministro da saúde José Gomes Temporão. Ele observa que esse montante (somando as três esferas federativas), que hoje é de 42% do gasto total, deveria ser, no mínimo, de 60%. O percentual atual de recursos públicos, acrescenta, faz com que mais da metade dos dispêndios em saúde seja bancada por bolsos privados: famílias e empresas.

 

“A saúde há muito tempo deixou de ser compreendida como um gasto”, afirma Temporão. Segundo ele, a discussão sobre propostas de restrição do piso — valor mínimo a ser investido pela União — é um absurdo. “É uma miopia imensa não perceber a dimensão econômica da saúde”, salienta. Isso porque, ressalta, ao mesmo tempo que é fundamental para a melhoria das condições de vida, a saúde tem uma dinâmica para criar empregos, desenvolvimento e tecnologia.

 

No setor privado, há alguns motivos para otimismo. Pela primeira vez desde 2021, as operadoras fecharam o primeiro trimestre de 2024 com resultado operacional positivo de R$ 1,9 bilhão. No entanto, Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), diz que é cedo para considerar os prejuízos operacionais coisa do passado recente.

 

“O resultado trimestral mostra patamar próximo aos anos pré-covid-19”, diz. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) indicam que, no acumulado dos últimos três anos, o resultado operacional negativo das operadoras médico-hospitalares foi de R$ 17,5 bilhões. Só em 2023, quando entraram 957 mil novos usuários em relação a 2022, esse prejuízo foi de R$ 5,9 bilhões. Ainda assim, devido aos ganhos financeiros, o lucro líquido em 2023 foi de R$ 1,9 bilhão.

 

Os planos de saúde, ainda com a situação financeira delicada, também enfrentam a concorrência das empresas de cartões de desconto em saúde. Estima-se, diz Ribeiro, que esses cartões já atendam cerca de 40 milhões de pessoas. “É um mercado paralelo que corre à margem das normas de regulação”, ressalta o executivo.

 

Para ele, a possibilidade de segmentação de planos de saúde — a venda de produtos com coberturas reduzidas, somente consultas e exames, ainda não permitida por lei — é uma das alternativas possíveis para que mais pessoas consigam acessar o sistema de saúde privado no país. “Existem diversos tipos de segmentações possíveis. O que é preciso discutir são mecânicas para que o produto se torne mais acessível.”

 

Ribeiro lembra que três das maiores operadoras globais na área da saúde — a Allianz (alemã), a UHG (americana, ex-dona da Amil ) e a Sompo (japonesa) — deixaram o mercado brasileiro. “Precisamos discutir soluções que atendam um país em que a pirâmide etária está se invertendo, que é um dos mais velozes do mundo na incorporação de novas tecnologias e que sofre com o aumento expressivo da insegurança jurídica”, observa.

 

Antigo pleito do setor, a venda de planos básicos também é defendida pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde). Segundo a diretora-executiva da entidade, Vera Valente, o primeiro trimestre possui uma sinistralidade menor que os demais. Por isso, lembra que, apesar dos dados positivos do começo de 2024, os próximos meses confirmarão ou não a tendência de recuperação do resultado operacional.

 

“O reforço de iniciativas de controle de custos, a negociação de preços, a redução de desperdícios e o combate a fraudes foram decisivos para a recuperação dos resultados operacionais”, diz ela. A FenaSaúde aponta riscos na atual proposta de mudança na Lei dos Planos.

 

“Pode inviabilizar o setor e pode prejudicar drasticamente o funcionamento de hospitais, que têm mais de 80% do faturamento vindo dos planos e laboratórios privados”, diz Valente. “As discussões devem se pautar pela garantia da qualidade dos tratamentos, a custos compatíveis com a capacidade de pagamento da população”, acrescenta.

 

O mercado de saúde suplementar, aponta o economista Carlos Ocké, especializado em saúde coletiva, vive um acirramento da concorrência. “Assistimos à disputa por usuários de baixo risco e de renda elevada, ao mesmo tempo que se restringem planos individuais, subordinados à regulamentação, porque diminuem a rentabilidade”, observa.

 

Cerca de 82% dos planos são coletivos, cujos aumentos não são regulados pela ANS, como nos produtos individuais. Com a financeirização do setor, diz Ocké, além da aposta na verticalização, a alternativa das operadoras é integrar os setores de baixa renda por meio de planos individuais baratos e de menor qualidade, pouco vantajosos para os usuários.

 

No Congresso Nacional, o Projeto de Lei 7.419, de 2006, que integra mais 270 propostas para alterar a Lei dos Planos vigente, só deve ser votado após as eleições municipais, segundo estimativas do mercado. O relator, deputado Duarte Júnior (PSB-MA), candidato a prefeito de São Luís (MA) e ex-presidente do Procon de seu Estado, resiste em apoiar interesses das operadoras.

 

No fim de julho, agentes do setor comentavam que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), cogitava a troca de relator ou pretendia pautar um projeto alternativo. Isso para atender ao compromisso firmado, no fim de maio: as operadoras suspenderiam cancelamentos unilaterais de contratos em troca de a Casa legislativa avaliar demanda do setor.

 

De acordo com Lígia Bahia, professora de saúde coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as operadoras querem atender problemas simples de saúde, deixando terapias e tratamentos de médio e alto custos para o SUS. Parte da saúde suplementar, diz, almeja entrar no nicho mais popular.

 

“Especialmente agora que as farmácias e drogarias se apresentam como locais para a realização de procedimentos e anunciam perspectivas de extensão para a inclusão de telemedicina entre suas atividades”, ressalta a professora.

 

A ANS estuda um sandbox regulatório, ou seja, a criação de um ambiente para que sejam testados novos produtos, serviços ou tecnologias, conta seu diretor-presidente, Paulo Rebello. “A ANS entende a necessidade de se discutirem medidas com o objetivo de facilitar a contratação por parte dos consumidores, de ter oferta maior onde há poucas opções e incentivar a concorrência entre operadoras”, diz.

 

A incorporação de terapias avançadas, por exemplo, tem sido muito debatida na saúde suplementar. “Em alguns casos, os custos dos medicamentos para um único paciente ultrapassam as receitas de operadoras de pequeno porte. Então, não há dúvida de que o setor deve estar preparado para os efeitos decorrentes dessas mudanças”, observa Rebello.

 

Uma novidade que pode estar a caminho é a fiscalização e regulação dos cartões de desconto pela ANS, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já fez essa determinação. No entanto, a agência aguarda a definição de pontos pendentes até o fim do julgamento para adotar providências sobre o assunto.

 

A regulação da saúde suplementar, diz Lucas Andrietta, coordenador do programa de saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), precisa proteger os consumidores contra práticas abusivas e violações de direitos. A ANS, acrescenta, é omissa em diversos pontos, como os cancelamentos unilaterais de contratos e os reajustes exorbitantes, que se tornam objeto de judicialização.

 

“Tem chegado aos órgãos de proteção ao consumidor casos de descumprimento sistemático de liminares, pois a multa não é suficiente para forçar as operadoras a cumprir a decisão judicial”, ressalta Andrietta. As reclamações mais recorrentes de consumidores envolvem negativas de cobertura, reajustes exorbitantes, cancelamentos unilaterais e problemas com a rede credenciada.

 

Reajustes e rescisões de contratos são temas que precisam de regulamentação para impedir condutas abusivas, aponta Rafael Robba, sócio do escritório Vilhena Silva Advogados, especializado em direito à saúde. “Pontos como os descredenciamentos e a portabilidade também precisam ser aprimorados”, diz

acordo Lira planos de saúde

Dr. Rafael Robba, advogado especialista em Direito à Saúde

 

Segundo o advogado, embora esta última seja regulamentada pela ANS, as operadoras fazem seleção de risco. “As mudanças na lei podem reduzir os conflitos com as operadoras. Hoje, a maioria dos que chegam ao Judiciário é relacionada a lacunas da legislação e a omissões regulatórias”, lembra ele.

 

A sustentabilidade do setor, ressalta Leandro Berbert, sócio-líder de health sciences & wellness da EY Brasil, está na pauta e assim deve continuar por muito tempo. “Vários mecanismos podem ser utilizados para mitigar essa questão, como a contínua busca pela redução de desperdício e a prevenção de eventos de alto custo”, avalia.

 

Além do repasse de preço para as empresas e usuários como forma de recompor o resultado operacional, observa Berbert, as operadoras vêm investindo em produtos com redes mais enxutas, em parcerias para determinadas linhas de cuidado, e buscando maior padronização de protocolos junto aos prestadores e médicos credenciados. Ele destaca que a crise no setor — queda no resultado operacional e baixa performance das ações listadas em bolsa — impactou o movimento de fusões e aquisições. E lembra que, após um período entre 2017 e 2022, de acelerada consolidação, 2023 registrou uma queda significativa no número de transações. “A despeito da consolidação recente, ainda observamos alguns bons ativos a serem consolidados, fora das grandes regiões metropolitanas”, afirma.

 

Leonardo Giusti, sócio da KPMG, também vê espaço para consolidação, uma vez que a verticalização continua como tendência. No entanto, destaca que há um longo caminho em busca de eficiência. “Isso porque grandes players foram empilhando as compras e ainda não conseguiram produzir as sinergias que eram esperadas”, observa.

 

Para ele, a atuação conjunta entre os setores público e privado pode ser uma estratégia eficaz para melhorar a promoção, prevenção e a assistência em todos os níveis de complexidade. Como exemplos dessa cooperação, ele cita programas educativos de prevenção de doenças crônicas, uso da infraestrutura do setor privado para apoiar as campanhas de vacinação e de clínicas privadas para complementar os serviços de saúde da família do SUS, entre outros.

 



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