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Tema 990 e doenças raras: critérios exigem revisão

Valor Econômico | Marcos Patullo | 26.11.2021

Um possível caminho para esse debate é a aplicação do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 500

A Lei nº 9.656/98 prevê em seu artigo 10º a obrigatoriedade de cobertura dos tratamentos destinados à cura das doenças listadas na Classificação Internacional das Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10). Todavia, no mesmo artigo, o texto legal autoriza às operadoras de planos de saúde a exclusão de cobertura de alguns serviços, dentre eles dos “medicamentos importados não nacionalizados”, a teor do disposto no artigo 10º, inciso V.

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O tema da cobertura dos medicamentos importados pelos planos de saúde sempre foi bastante polêmico e objeto de intensa judicialização, tanto nas Cortes estaduais quanto perante o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2018, no entanto, com o intuito de pacificar o entendimento sobre a questão, a 2ª Seção do STJ decidiu,em sede de recurso repetitivo, o Tema 990 (REsp 1.726.563-SP, de relatoria do ministro Moura Ribeiro) que as operadoras de planos de saúde não possuem a obrigação de cobrir medicamentos importados não registrados perante a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

 

Um possível caminho para esse debate é a aplicação do entendimento firmado pelo STF no Tema 500

 

Com efeito, referida decisão serve, atualmente, de diretriz para as Cortes estaduais decidirem a questão. Todavia, a interpretação literal e engessada da referida decisão pode levar a enormes injustiças, dentre elas a de deixar os tratamentos de doentes raros e ultrarraros fora da cobertura da saúde suplementar.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma doença pode ser considerada rara se afeta 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 para cada duas mil pessoas. Conforme explica o professor Cláudio Cordovil, um dos grandes entraves para os doentes raros é justamente o fato de que a assistência farmacêutica no Brasil, bem como os protocolos clínicos, diretrizes terapêuticas e o sistema de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) são estruturados em cima de uma lógica de “medicina baseada em evidências”, a qual, embora tenha assertividade para a definição das terapêuticas que devem ser destinadas à grande maioria das doença, possui evidentes limites quando se trata de doentes raros, haja vista a escassez de dados estatísticos para a validação científica dos medicamentos destinados a esse tipo de paciente.

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Isso demonstra a necessidade de a jurisprudência evoluir e de se discutir os limites da aplicação do Tema 990 do STJ para a definição da cobertura dos medicamentos importados sem registro na Anvisa pelos planos de saúde, em especial no que tange às doenças raras e ultrarraras. Um possível caminho para esse debate é a aplicação do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 500, que fixou os critérios para as decisões judiciais que versam sobre o dever do Estado de fornecer medicamento não registrado na Anvisa.

Na referida decisão, o STF, embora tenha fixado como regra geral a necessidade de que os medicamentos sejam registrados na Anvisa, estabeleceu três critérios para que essa regra seja excetuada, quais sejam: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultra raras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

A leitura dos critérios acima mencionados faz surgir uma pergunta: por qual razão o STF excepciona os medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, para os quais sequer se exige a existência de pedido de registro perante à Anvisa? A Suprema Corte, ao estabelecer a tese, foi sensível às dificuldades, técnicas e econômicas, que a própria indústria farmacêutica tem em desenvolver esses medicamentos, bem como ao fato de que muitos desses medicamentos sequer são submetidos a pedido de registro no Brasil por desinteresse do próprio laboratório ou, até mesmo, por inviabilidade econômica.

O posicionamento que o STF firmou no Tema 500, que, repita-se, é destinado ao sistema público de saúde, demonstra a necessidade de a jurisprudência refletir sobre a flexibilização da aplicação do Tema 990 do STJ para a saúde suplementar, especialmente com relação ao caso dos pacientes raros e ultrarraros.

Marcos Patullo – Advogado e sócio do Vilhena Silva Advogados.

Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou essa questão no julgamento do Recurso Especial nº 1885384/RJ, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no qual se discutia a cobertura, pela operadora de plano de saúde, do medicamento Kineret (Anankira), destinado ao tratamento de uma doença rara denominada Síndrome de Síndrome de Schnitzler. Referido julgado pode ser considerado um marco importante na jurisprudência do STJ, uma vez que o ministro relator reconheceu que o fato de a doença ser ultrarrara configura “substancial diferença material” apta a afastar o entendimento firmado pelo STJ no Tema 990. Mais do que isso, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino citou expressamente o Tema 500 do STF e concluiu que “pelo que infere do exposto, o Supremo Tribunal Federal, no que importa, deixou explícito que a raridade ou ultrarraridade da doença tem o condão de excepcionar a regra geral” (STJ, 3ª Turma, REsp 1885384 – RJ. relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino).

A questão da cobertura de medicamentos importados pelos planos de saúde, em especial para as doenças raras e ultrarraras, ainda será objeto de muita discussão no Judiciário e está longe de ser pacificada. O precedente da 3ª Turma do STJ, acima citado, representa uma evolução importante da jurisprudência, que inevitavelmente terá que estabelecer critérios para excepcionar a tese firmada no Tema 990 e impedir que a sua aplicação fria e literal acarrete injustiças no caso concreto.

Marcos Patullo é especializado em direito à saúde e sócio do escritório Vilhena Silva Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

 



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