fbpx

Remédio à base de canabidiol poderá ser distribuído pelo SUS

Boletim AASP 2ªQUINZENA #3167 | Março de 2023 | Beatriz Kestener e Tatiana Kota

Leis aprovadas em São Paulo, Paraná e Alagoas facilitam o acesso ao óleo extraído da maconha.

A distribuição de produtos à base de canabidiol (CBD) pelo Sistema Único de Saúde (SUS) está permitida, por leis, nos estados de São Paulo, Paraná e Alagoas. O Estado nordestino foi o primeiro a promulgar a norma, em novembro do ano passado. Em São Paulo, no dia 31 de janeiro, ao sancionar a Lei nº 17.618/2023, o Governador contou que tem um sobrinho com síndrome de Dravet, doença que provoca crises de convulsão, e que o menino melhorou a partir do tratamento com CBD.

No Paraná, a promulgação da lei, em fevereiro, coube à Assembleia Legislativa porque o texto enviado em dezembro para sanção do Governador não foi apreciado. No Estado, o Projeto de Lei (PL) nº 962/2019 leva o nome de Lei Pétala, em homenagem a uma menina diagnosticada com uma doença rara que afeta o desenvolvimento neurológico. Ela é uma das pacientes que faz uso de medicamentos à base de CBD.

Quais são as repercussões imediatas dessa lei para pacientes, médicos e planos de saúde?

BEATRIZ CAMARGO KESTENER: O que podemos identificar imediatamente é o objetivo: essa lei estabelece uma política pública específica para pacientes que dependem desses produtos, assegurando que o SUS, no âmbito do Estado de São Paulo, tenha o necessário fundamento legal para dispensá-los à população a quem se dirige. No entanto, a lei autorizou o acesso apenas para os produtos à base de Cannabis devidamente registrados perante a Anvisa. O Estado não é obrigado a fornecer o produto artesanal, muitas vezes preparado pelas associações de pacientes, nem a financiar a produção caseira. Até então, pacientes paulistas a quem o CBD traz benefícios clínicos somente poderiam ter acesso a tais produtos de duas formas: (i) conseguindo por meio do Poder Judiciário, para obrigar o Estado a lhes dar acesso ao produto, ou (ii) adquirindo, às suas expensas, o produto, com todas as dificuldades de acesso possíveis (mercado, importação, custo, etc.). A Lei nº 17.618/2023 reafirma o compromisso do governo do Estado de São Paulo na garantia de acesso a esses produtos, sem que o paciente precise, em tese, recorrer ao Judiciário. Diz-se “em tese” porque mesmo os medicamentos tradicionais muitas vezes não estão disponíveis, em que pese tenham até mesmo sido incorporados ao SUS, como o foi o CBD no SUS paulista. Para profissionais da medicina, a lei paulista garante que pacientes com a prescrição do CBD tenham onde encontrá-lo. Já para os planos de saúde, a questão é um tanto mais complexa, porque a incorporação de medicamentos se dá via Agência Nacional de Saúde (ANS), que é um órgão federal. Entretanto, é de se esperar que o Poder Judiciário paulista invoque essa norma para obrigar os planos de saúde a fornecer CBD aos pacientes paulistas; já há julgados nesse sentido antes da lei. O tema encontra-se, aliás, sumulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) (Súmula nº 102: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”). Para as indústrias farmacêuticas, há igualmente vantagem: um mercado necessário para atender a essa política pública especificamente; mas o acesso objeto dessa nova política pública não será imediato. Nos termos da norma, a Secretaria da Saúde tem 30 dias para criar uma comissão de trabalho para implantar as diretrizes dessa política no Estado, a partir da sua vigência, que é de 90 dias contados da publicação. São, pelo menos, 120 dias até a sua eficácia plena.

TATIANA HARUMI KOTA: A Lei nº 17.618, que institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de CBD, em associação a outras substâncias canabinoides, incluindo o tetra-hidrocanabidiol (THC), é uma vitória para os pacientes que já fazem uso da substância, principalmente para tratamentos de epilepsia, esclerose múltipla, doença de Parkinson, esquizofrenia, transtorno do espectro autista, dores crônicas, insônia, distúrbios psiquiátricos, neurológicos, reumatológicos, bem como para o atendimento geriátrico e paliativo Por se tratar de terapia de uso contínuo, o custo era um empecilho para o pleno acesso desses pacientes. A lei não trouxe restrições para a comunidade médica no que diz respeito à prescrição do CBD, como tentou o Conselho Federal de Medicina (CFM).  Com a lei paulista, os beneficiários pressionarão os planos de saúde para incluir o medicamento no rol da ANS e tornar o custeio obrigatório.

A Anvisa aprovou cerca de 24 medicamentos feitos à base do CBD e extratos de Cannabis (legislação RDC nº 327/2019), mas como se dão a prescrição e a entrega desses remédios?

BEATRIZ CAMARGO KESTENER: O primeiro conceito que orienta a prescrição de um produto à base de Cannabis é a ausência de alternativas terapêuticas para atender a determinada condição clínica do paciente: já se tentou de tudo, porém nada resolveu. Aí o CBD pode ser uma opção. Medicamentos tradicionais não específicos para dada condição clínica já são prescritos assim: adota-se a prescrição “off label” para o chamado uso compassivo. A receita médica é a mais restrita (tarja preta, com retenção de receita), e o paciente deve assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que exponha o fato de que o produto não é tradicional e seu uso é experimental. Salvo essas três condições, no mais, não vemos alterações relevantes, se a compararmos com os medicamentos tradicionais.

TATIANA HARUMI KOTA: Após a publicação da lei, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo deverá criar uma comissão de trabalho para implantar as diretrizes da política no Estado, com a participação de técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa da Cannabis e de associações representativas de pacientes.

A Resolução nº 2.324/2022 do CFM pode influenciar negativamente a proposta legal, impedindo a prescrição? Há também um debate médico sobre quem está qualificado para prescrever esses remédios. Isso pode ser um obstáculo para a efetivação do tratamento?

BEATRIZ CAMARGO KESTENER: A Resolução nº 2.324/2022 foi temporariamente suspensa e, atualmente, o tema “prescrição de canabidiol” é objeto de Consulta Pública aberta pelo próprio CFM. Esperamos mais racionalidade no resultado dessa iniciativa. Todavia, se mantidas as restrições impostas pela resolução, os médicos terão uma janela muito estreita para o uso regulamentar do CBD na sua prática clínica. Em tese, por força da Lei do Ato Médico (Lei Federal nº 12.842/2013), qualquer médico tem autonomia para prescrever produtos à base de Cannabis a seus pacientes, desde que seguidos os requisitos da RDC nº 327/2019. Uma limitação do CFM pode, sim, se tornar um obstáculo para a prescrição, uma vez que o fornecimento garantido pela lei paulista impõe a prévia prescrição médica. Se o CFM impede o médico de prescrever o produto senão nas condições que especifica, o paciente não terá uma receita para solicitar o produto ao SUS paulista.

TATIANA HARUMI KOTA: O CFM havia restringido o alcance do uso do CBD para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no complexo de esclerose tuberosa por intermédio da Resolução nº 2.324/2022. Se a moléstia não estivesse listada nas diretrizes do órgão, o médico estava impedido de prescrever a droga. Essa resolução foi recepcionada como um retrocesso nos critérios para a prescrição do CBD no Brasil. Por conta das severas críticas da sociedade, o CFM sustou temporariamente os efeitos da nova regra, por intermédio da Resolução nº 2.326, de 24 de outubro de 2022. Atualmente, o médico tem autonomia para prescrever o fármaco registrado na Anvisa. Além disso, são várias resoluções da Anvisa que versam sobre produtos à base de Cannabis; a autorização individual já era permitida desde 2015 (RDC nº 335/2020) e os critérios e procedimentos para sua importação eram definidos através da RDC nº 660/2022. A Anvisa também estabeleceu os procedimentos para a concessão de autorização, além de definir os requisitos necessários para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais, através da RDC nº 327/2019.

Como a advocacia orienta médicos, empresas de saúde coletiva e pacientes e seus familiares a partir dessa nova realidade?

BEATRIZ CAMARGO KESTENER: Os produtos à base de Cannabis registrados na Anvisa carecem de estudos clínicos suficientes para garantir sua segurança e eficácia. É uma tecnologia nova que pode, sim, oferecer riscos ao paciente, na medida em que não se conhecem – cientificamente – seus efeitos, notadamente em longo prazo. Nesse aspecto, cada setor da economia tem uma recomendação diferente: (i) Para os pacientes: informem-se tão profundamente quanto possível. O produto não tem evidências científicas consagradas, de modo que a opção pelo uso do medicamento é livre e, portanto, não coberta pelas garantias usuais de um Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo. (ii) Para os médicos: acautelem-se, não apenas exigindo do paciente que assine o TCLE, mas efetivamente informando o paciente sobre todas as circunstâncias conhecidas que envolvem o uso desse produto. Quanto maior e mais adequada a informação prestada, melhor a compreensão do paciente e mais adequado o seu consentimento livre (e esclarecido). A responsabilidade do médico é imensa, por isso todo o cuidado é pouco. Uma indenização por responsabilidade profissional decorrente de eventuais danos causados pelo produto, nessas circunstâncias, pode ser mitigada sempre que o TCLE for assinado pelo paciente e as informações prestadas pelo médico forem amplas e abrangentes acerca produto, da sua natureza experimental e, enfim, dos riscos. (iii) Para os fabricantes: invistam em pesquisa. Quanto mais o fabricante conhecer não apenas o produto, mas seus processos de produção, melhor poderá se defender de uma eventual ação por danos. Observe: embora não se conheça a fundo a eficácia e confiança do produto, a segurança dos meios de produção também é um aspecto a ser considerado. O CDC impõe que o fabricante tenha, em seu poder, dados do produto que oferta no mercado. De outro lado, um produto que tenha sujidades (e em farmacologia, esse tema é amplíssimo porque implica avaliar um rol de tecnicidades farmacêuticas, etc.) poderá causar mais dano do que benefício. Daí porque, além do registro na Anvisa, adotar um folheto informativo (equivalente à bula do medicamento tradicional) completo, abrangente e cuidadoso é igualmente mandatório para prevenir, embora não se possa evitar, contingências desnecessárias. (iv) Para os planos de saúde: planejem-se e criem políticas internas para fornecer esse produto adequadamente. A negativa de acesso indiscriminada só levará a empresa à judicialização. Planejamento é a saída. A prescrição desse produto não tem volta. Será, com o tempo, consagrado.

TATIANA HARUMI KOTA: A lei beneficiará muitos pacientes em São Paulo, pois terão seu tratamento disponibilizado pelo SUS. Porém, a comissão de trabalho ainda precisa implantar as diretrizes da política estadual para dispensação do CBD. Com o trâmite definido, se houver recomendação médica, o paciente deve buscar as unidades de saúde pública estadual e privada conveniada ao SUS para pleitear o fornecimento do medicamento. Apesar de a lei prever uma redução das demandas judiciais, a Secretaria de Saúde ainda não definiu os critérios para dispensação dos produtos à base de Cannabis.

Qual pode ser o impacto desse movimento regulatório para a advocacia que trabalha para as indústrias farmacêuticas, levando em conta que hoje são poucos os medicamentos permitidos e muitos os de produção artesanal?

BEATRIZ CAMARGO KESTENER: Observe as recomendações feitas a pacientes, médicos, indústria e planos de saúde. Todos esses temas são objeto do trabalho da advocacia. Além disso, com a aprovação do PL nº 399/2015, espera-se um investimento imenso em Cannabis e, assim, haverá bastante movimento na área societária e de contratos. A produção artesanal, a meu ver, representa um grande risco, não apenas para o paciente e para os médicos, mas também para as associações de pacientes. Não se nega o caráter humanitário dessa iniciativa, porém ela padece de regulamentação.

Você pode se interessar por:



WhatsApp chat