21 mar Operação de guerra contra coronavírus cancela cirurgias e foca casos graves
Sem UTIs para todos, triagem e ampliação da capacidade são prioridade
Os comandos das UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) e das redes de saúde no país deflagraram uma operação de guerra para ampliar o espaço nos hospitais aos pacientes graves com o novo coronavírus que precisem de internação e de equipamentos de respiração com ventilação mecânica.
As UTIs e esses aparelhos serão o destino de mais de 5% dos infectados pelo coronavírus, levando em conta as estatísticas da doença até agora.
A prioridade é que apenas eles, os doentes graves e incapazes de respirar sozinhos, ocupem esses leitos.
Ainda sem ter chegado ao ápice da epidemia, relatos nos hospitais indicam que o Brasil será atingido com extrema gravidade, o que tem provocado muita ansiedade entre as equipes médicas dentro e fora do sistema de UTIs.
São duas as estratégias principais, que demandam rápida reorganização do sistema e medidas drásticas, como o cancelamento em massa de cirurgias programadas para casos sem urgência:
1) Linha de frente: filtrar os doentes nos municípios por meio da atenção básica e, no limite, usar leitos comuns para os casos menos graves;
2) Retaguarda: atendimento nos hospitais com UTIs, onde a prioridade é elevar a todo custo o total de leitos e proteger da epidemia os cerca de 6.500 médicos intensivistas e outros milhares de profissionais de saúde ligados a eles.
Na linha de frente, menos de 10% dos municípios brasileiros têm leitos de UTI, que estão concentrados em cerca de 200 cidades com mais de 150 mil habitantes, entre as 5.570 do país.
O desafio é que os municípios menores façam a triagem criteriosa daqueles que devem ser deslocados a hospitais de referência em seus estados —onde as UTIs já trabalhavam com margem apertada mesmo antes da crise da Covid-19.
Com sete profissionais cada uma, as 47,7 mil equipes de saúde da família do Ministério da Saúde já realizam triagens em UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e residências no país.
Nas UBSs, os doentes que chegam passam por um “fast track”: são submetidos o mais rápido possível a exame clínico por agentes protegidos por itens anticontaminação que têm a missão de tirá-los dali o quanto antes.
Os positivos para a Covid-19 e menos graves recebem orientação de como ficar isolados em casa e as medidas para atenuar sintomas da doença. Idosos e gestantes são estimulados a se vacinar contra gripe, para que não acabem ocupando UTIs depois por esse motivo.
Os doentes graves e com dificuldade respiratória recebem medidas iniciais de suporte e têm solicitada a remoção para hospitais de referência.
O principal problema é que a maioria das cerca de 4.000 cidades com menos de 50 mil habitantes não tem ambulâncias. Nesses casos, a transferência precisa ser coordenada em nível estadual ou a prefeitura tem de bancar o transporte particular, explica Denize Ornelas, diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
Por causa da distância dos grandes centros, a expectativa é que os casos de infecção demorem um pouco mais a chegar a esses municípios, retardando a necessidade de UTIs nesse primeiro momento para essa parcela da população.
Os mapas e quadros abaixo mostram quais estados no Brasil estão mais preparados em termos de médicos por habitante, cobertura de atenção básica e leitos hospitalares nesta linha de frente de combate à epidemia.
A combinação dos dados, todos oficiais, foi transformada em um índice geral pelo Datafolha para ordenar a capacidade de cada um —quanto mais próximo de 1, mais preparado.
Já na retaguarda das UTIs, além do atendimento emergencial dos pacientes graves que chegam, a principal preocupação tem sido colocar em movimento a estratégia de ampliar o número de leitos.
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O Brasil tem cerca de 31 mil leitos de UTIs exclusivas para adultos, que estão divididos mais ou menos ao meio entre públicos e privados.
O número sobe para cerca de 45 mil ou mais se forem consideradas outras unidades que podem ser usadas para esse fim —e sem contar um total ainda indefinido que o Ministério da Saúde está incorporando ao sistema.
O problema é distribuição regional e a lotação dos leitos.
O SUS (Sistema Único de Saúde) não tem UTIs suficientes para atender a crise do coronavírus caso a epidemia atinja, no Brasil, a gravidade de outros epicentros do mundo —o que é cada vez mais provável.
Nesses países, têm sido necessários 2,4 leitos de UTI, em média, para cada 10 mil habitantes. O SUS tem média de apenas 1 por 10 mil, o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde —Nordeste, Norte e Centro-Oeste têm menos do que isso.
Já a rede privada de UTIs tem 4 leitos para cada 10 mil segurados, em média. Mesmo somados, porém, os leitos públicos e privados de UTI não passam de 2,1 por 10 mil habitantes.
Como agravante, antes mesmo da crise do coronavírus, a taxa de ocupação de leitos do SUS já era de 95%. No setor privado, de 80%. Juntos, os dois sistemas trabalhavam constantemente com menos de 6.000 leitos de UTI livres.
Com a emergência da crise, espera-se agora que pacientes dos dois setores acabem por ocupar indistintamente as UTIs que estiverem livres.
Outro problema é que os internados pela Covid-19 têm ocupado UTIs por até três semanas, o triplo do tempo que outros doentes costumam ficar nessas unidades.
Nas administrações de UTIs, a prioridade máxima, enquanto a infecção não ganha grandes proporções, tem sido cancelar em massa as cirurgias eletivas (programadas e geralmente sem urgência) que usariam as unidades intensivas depois de realizadas.
Na média, esses procedimentos geralmente ocupam cerca de 25% dos leitos das UTIs brasileiras, que podem vir a ser liberados para os infectados pela Covid-19.
Além do cancelamento de cirurgias, outras unidades de tratamento intensivo intermediárias e coronarianas, por exemplo, poderão ser adaptadas, ampliando o espaço.
Nos quadros abaixo, é possível comparar, por estado, a capacidade de atendimento nas UTIs e os principais tipos de cirurgias eletivas que devem ser adiadas.
Essas medidas, mais a expectativa de que um número menor de pessoas circulando gere menos acidentes e traumas, podem elevar mais a capacidade de atendimento das UTIs, segundo Suzana Margareth Lobo, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).
No Centro de Tratamento Intensivo que ela comanda no Hospital de Base de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, UTIs pós-operatórias e neurocirúrgicas já estão na lista das que podem ser usadas caso haja um aumento do número de casos graves.
“É pela limitação de leitos que o fundamental passou a ser o isolamento social, que tem o objetivo de achatar ao máximo a curva de aumento de casos”, afirma.
Além da falta de equipamentos, sobretudo para respiração assistida, outra preocupação fundamental é com a saúde dos 6.500 intensivistas e de outros milhares de profissionais nas UTIs onde atuam.
O objetivo é que as “equipes Covid”, como estão sendo chamadas, fiquem completamente separadas das “equipes limpas”, que cuidam do tratamento de outros casos. Isso requer banheiros, salas de descanso e refeitórios exclusivos a cada uma delas.
O maior risco é a falta de equipamentos de proteção a essas equipes, além do estresse a que estarão submetidas.
Segundo Adelvânio Francisco Morato, presidente da Federação Brasileira de Hospitais, que reúne 4.200 unidades privadas, o aumento de casos de infecção já produziu enormes transtornos aos hospitais. “Não haverá estrutura para quando chegarmos ao pico”, diz Morato.
A “desospitalização” da sociedade agora, com o cancelamento de consultas e cirurgias eletivas, além da triagem criteriosa de casos graves, são, na opinião de todos, as principais medidas a serem tomadas nesse momento.