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Sinistralidade e relação contratual

As operadoras fingem que a lei não existe e a ANS finge que as fiscaliza. Resta ao consumidor ficar atento e vigiar sempre a atuação da operadora que contratou para que a violação dos direitos não ocorra.

Por: Renata Vilhena Silva

O conceito de sinistralidade é usado pelas operadoras de saúde como balizador na hora do reajuste de preços. A apuração dos últimos 12 meses da receita versus despesa indica se o contrato é financeiramente compensador para as partes, ou se o valor pago na mensalidade é justo e mantém a relação contratual equilibrada, considerando os sinistros ou as despesas geradas com aquele contrato. 

Quanto mais um grupo usa o plano de saúde, maior a sinistralidade e, consequentemente, maior o reajuste no ano seguinte. A configuração de abuso ocorre quando a cláusula, que consta da maioria dos contratos coletivos empresariais, passa a ser cobrada de forma incorreta para burlar os dispositivos legais previstos no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e nas regras da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). 

Como todos os contratos preveem aumento por faixa etária, quando esse é aplicado não deve ser imputada, ainda, a cláusula de sinistralidade. Não se pode cobrar de um cliente dois aumentos anuais. Ou se cobra pela mudança de faixa ou pela sinistralidade. A fragilidade e ilegalidade do conceito é evidente se pensarmos que as operadoras, ao traçarem seus planos de negócio, já calculam uma margem de risco para sua atuação no mercado.

De acordo com o artigo 757 do Código Civil, de 2002, não é permitida a transferência do risco que descaracteriza o contrato de seguro. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. 

Como as contas não são transparentes e os cálculos das taxas de uso nunca são mostrados, não há a comprovação de quitação das mesmas que justifique a sinistralidade. A medida também se torna nula pelo Código de Defesa do Consumidor que trata da ausência de informação clara e adequada no artigo 6º, III (Lei nº 8078, de 1990) e da imposição de obrigação iníqua, excessiva, que cria desvantagem exagerada e permite a variação unilateral do preço – no artigo 51, incisos IV e X.

 

Uma relação contratual tem de ser útil e justa às duas partes, sem privilegiar o interesse de uma, em detrimento da outra. Um dos casos mais comuns é o dos pacientes com câncer. Se em uma apólice existir um paciente de alto custo, que gera a sinistralidade, quando esse paciente morre, as taxas não voltam ao patamar anterior em que não havia o gasto. As taxas de sinistro continuam altas e sendo cobradas, como se aquele paciente ainda estivesse utilizando o remédio caro ou gerando despesas de uma internação na UTI. A mensalidade deveria ser reduzida quando não ocorre o sinistro.

NA VISÃO DO PODER JUDICIÁRIO: O cancelamento unilateral do contrato empresarial pela operadora

Em 2012, a ANS criou a Resolução Normativa nº 309, que dispõe sobre o agrupamento de contratos coletivos de planos privados de assistência à saúde para fins de cálculo e aplicação de reajuste. O artigo 3º é claro na questão dos reajustes e seus termos também não têm sido respeitados. Seria recomendável que os planos coletivos fizessem agrupamentos de, no mínimo, dois mil beneficiários para a diminuição dos riscos atuariais.

Felizmente, os tribunais de justiça brasileiros vêm acolhendo recursos de empresas que se sentem lesadas com a aplicação abusiva dos reajustes e esse entendimento garante ao consumidor o direito à saúde, sem prejuízo do que foi acordado na assinatura do contrato.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julgou em 17 de abril de 2013 a Apelação nº 0218154-93.2011.8.26.0100, de reajuste de um contrato coletivo com base na sinistralidade. Na súmula 469, o desembargador Moreira Viegas entendeu que aquela disposição contratual colocava o consumidor em desvantagem exagerada ao permitir que o fornecedor variasse o preço de maneira unilateral e que havia ali a violação do artigo 51, incisos IV e X, do Código de Defesa do Consumidor.

Também reconheceu a abusividade na cláusula contratual que previa a rescisão unilateral imotivada e, ainda, julgou inadmissível o cancelamento injustificado do seguro saúde que coloca os segurados do contrato coletivo em situação de desvantagem – o que é contrário à Lei nº 9.656, de 1998, e ao Código de Defesa do Consumidor. A sentença foi mantida e o recurso desprovido.

QUER SABER MAIS? Os reajustes por sinistralidade e as suas distorções

Em outro caso, envolvendo ação civil pública contra a Amil Assistência Médica Internacional, que firmou contratos coletivos por adesão com micro e pequenas empresas, o juiz entendeu parcialmente procedente o pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo, tendo declarado nula a cláusula contratual que estipula em desfavor do consumidor reajuste por sinistralidade.

Além disso, impôs a abstenção à demandada de inserir, nos contratos celebrados, disposição estabelecendo reajuste por sinistralidade, sob pena da incidência de multa, com fundamento no artigo 461, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, no valor de R$ 5 mil, por descumprimento e, ainda, a revisão da contraprestação que lhe é devida, com a incidência somente dos índices da ANS, sem prejuízo dos reajustes por mudança de faixa etária.

“Não é viável a utilização de fórmula matemática composta com fatores apurados unilateralmente pela recorrente e de, repita-se, difícil compreensão. Nega-se, por isso, provimento ao apelo”. (TJ-SP – 6ª Câmara de Direito Privado – Apelação nº 0216448-75.2011.8.26.0100).

 

Esses exemplos deixam claro que as operadoras fingem que a lei não existe e a ANS finge que as fiscaliza. Resta ao consumidor ficar atento e vigiar sempre a atuação da operadora que contratou para que a violação dos direitos não ocorra.

Publicado no Jornal Valor Econômico | Legislação e Tributos



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